30.10.09

DIZIAS QUE GOSTAVAS
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Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.
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[José Miguel Silva, in Vista para um Pátio Seguido de Desordem, Relógio D’Água, 2003]

27.10.09

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"Era nesta posição que estava quando o chamei, tendo-lhe explicado em poucas palavras o que queria que fizesse - nomeadamente que examinasse comigo um pequeno documento. Imaginem a minha surpresa, melhor, a minha consternação, quando sem se mexer do seu recanto, Bartleby, numa singular voz branda e firme, retorquiu:
- Preferia não o fazer!
Durante um bocado, deixei-me ficar sentado em perfeito silêncio, tentando recuperar as minhas aturdidas capacidades. De imediato me ocorreu que poderia ter sido traído pelos meus próprios ouvidos ou que Bartleby fizera uma interpretação absolutamente errónea do meu pedido. Repeti o pedido com o tom de voz mais claro que fui capaz. Mas, de forma igualmente clara, veio a anterior resposta:
- Preferia não o fazer."
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[Hermann Melville, in Bartleby, o Escrivão, Presença, 2009]

26.10.09

Nunca fodi. Mas não me importo de morrer sem ter fodido. Apaixonei-me. E ninguém por quem eu me tenha apaixonado se apaixonou por mim. Acho horrível uma pessoa foder sem estar apaixonada. Acho horrível uma pessoa nunca se ter apaixonado. Acho que é o pior que pode acontecer a uma pessoa. Não é nunca ninguém se ter apaixonado por nós. É tão horrível alguém apaixonar-se por nós e nós não podermos corresponder. As paixões desencontradas é como as cabeças trocadas.
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[Adília Lopes, in Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

24.10.09

A PERFEIÇÃO? A VIAGEM?
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Eva fica sozinha
com as maravilhas
artísticas do mundo
de que lhe servem
as maravilhas
artísticas do mundo
sem os filhos
e sobretudo sem Adão?
Deus e as maravilhas
artísticas do mundo
não lhe chegam
parte a loiça
da dinastia Ming
bate com a porta
(uma porta maravilhosa)
e chora os mortos
o seu sofrimento
não tem leitor
a menos que Deus a leia
mas para que lhe serve Deus
sem Adão?
Não se suicida
(para quê?)
continua a chamar
Eva precisa de Adão
para se dar bem com Deus
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[Adília Lopes, in Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

22.10.09

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Eu quero foder foder
achadamente
se esta revolução
não me deixa
foder até morrer
é porque
não é revolução
nenhuma
a revolução
não se faz
nas praças
nem nos palácios
(essa é a revolução
dos fariseus)
a revolução
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troca
hoje é uma relação
de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente
ceifa nos tempos livres
(semana de 24x7 horas já!)
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
e canta
contente
porque há alegria
no trabalho
o choro da bebé
não impede a mãe
de se vir
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste
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[Adília Lopes, in Dobra - Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

16.10.09

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[Cruzeiro Seixas, A Paisagem Exteriormente/A Paisagem Exterior Mente, 1973]

14.10.09

Paulo da Costa Domingos

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Narrativa, o mais recente livro de Paulo da Costa Domingos, é hoje apresentado na Trama, com leitura de excertos pelo autor, por Jorge Fallorca e por Nuno Moura. É às 22h.

13.10.09

LOUCA DO BAIRRO
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Tolhida, rebusca entre as caricas um sentido
que escorra, final,
de todas as garrafas que mataram
a sede
aos habitantes do bairro.
Traz laços coloridos no cabelo
e defeca com decência no passeio
onde cagam vigiados os cães da vizinhança.
Do seu nariz agudo, nem a rainha do Sabá
saberia falar a Salomão.
Na testa alta, azeitonada, alberga uma ciência
da distância.
Não olha para ninguém, nem mesmo para os pássaros
que com ela dividem o mesmo alô
de sombra solitária.
É verão e tem consigo o frio
do mundo.
Casacos, roupões de luxo
e uma estola traçada pelos desvarios
do tempo.
Não foi, é uma grande senhora,
esta teatral louca do bairro.
E o seu silêncio impõe nobreza tal
que os rapazes da droga lhe trazem do café
rissóis roubados ou um pouco de leitura
aristocrata.
Tolhida como um ícone, mantém uma beleza
doente.
E não há poema, prosa, melífula voz de incenso,
que a faça flutuar na brancura da tarde
Onde o sol reina, indiferente.
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Ela não precisa de tais luzes.
Na sua face enevoada brilha um deus.
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[Armando Silva Carvalho, in Lisboas, Quetzal, 2000]

12.10.09


[Chaim Soutine La Folle, 1919]

8.10.09

Será assim tão complicado?

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“Uma cidade são cafés e esplanadas, ruas cheias de movimento, lojas bonitas, lojas abertas fora do horário, transportes públicos de qualidade, variedade da população, imigrantes integrados, jovens moradores, parques e jardins, ruas arranjadas, bicicletas e transportes alternativos, estacionamento adequado, moda de rua, livrarias com cafés lá dentro, restaurantes e bares, museus e bibliotecas, exposições e concertos, teatros e clubes, propostas exóticas e ambiente protegido. Uma cidade tem de ter um jardim em cada bairro, população jovem, crianças e velhos, alegria nas ruas, pequeno comércio, oferta cultural, carros afastados do centro. […]
Em vez de mais planos megalómanos e estratégias o que Lisboa precisa é de micromanagement. Serviços decentes, transportes ‘verdes’, proibição de mais centros comerciais e condomínios privados, atracção da população jovem, recolha e reciclagem do lixo, plantação de árvores, incentivos aos novos empresários e comerciantes, regulação do mercado de habitação e escritórios, arquitectura integrada, responsabilidade dos moradores e proprietários no governo dos bairros. Substituir os carros de vez. Será assim tão complicado?”
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[Clara Ferreira Alves, Única (suplemento do Expresso), 12-09-2009]

6.10.09

Clara Ferreira Alves: a Lisboa pimba

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"Já não passeio a pé em Lisboa, porque os carros são tantos que corro o risco do atropelamento ou da intoxicação com dióxido de carbono. Ou será monóxido? Não interessa, respiramos fumo de escape. Ao fim da tarde, o bairro onde moro tapa os ouvidos por causa da sinfonia cacofónica de buzinas e motores a arrancar na grande marcha em direcção à auto-estrada. Durante o dia, alarmes de carros tocam desvairados, e o trânsito nunca pára o seu resfolegar de animal selvagem e enfurecido. O bairro perde a pouco e pouco a vida de bairro, os arrendamentos comerciais substituem os de habitação, não há onde estacionar, o pavimento tem buracos das chuvas e os preços aumentam por causa da fidalguia dos escritórios. Os escritórios andam povoados por meninos e meninas de fato completo de risca e saia-casacos pregueados, camisas e gravatas que discutem com avidez saldos e percentagens por entre duas trincadelas ao almoço, e cujos patrões, ou os serviçais deles, despejam na rua toneladas de lixo de papel que fica a voar todo o dia e ao fim-de-semana. Os caixotões da reciclagem, a transbordar, nunca são despejados, e parecem vir de um Terceiro Mundo a lembrar ao Primeiro que a Câmara tem mais que fazer. A sujidade da rua onde moro só diminui com a limpeza oficial das bátegas do Inverno, e amontoa-se no Verão, deixando no ar um odor a pó e fruta podre. Resiste o Jardim das Amoreiras, belo, sapiente, que os velhos e as crianças frequentam com medo de atravessar as ruas para lá chegar. Os carros, dentro e fora, acima e abaixo, ignoram-nos e quase os atropelam, e vejo muitas vezes no olho esgazeado do ancião, o terror de não conseguir chegar ao outro lado. As passadeiras têm carros em cima, os passeios têm carros em cima e as pessoas têm carros em cima. Nunca consigo escutar o som do silêncio. E já não vejo o rio, cada vez mais caro. Como dizem os agentes imobiliários: com vista de rio são mais dez mil contos.

Lisboa pertence, agora, a duas espécies de gente: os turistas e os suburbanos. Para os turistas, raça mais alegre, Lisboa alinda-se, constrói elevadores, ergue hotéis e patamares, pinta a cara de fresco. Para os suburbanos, raça mais tristonha, Lisboa constrói parques de estacionamento e centros comerciais. A cidade, esventrada e desfigurada, destruída e voltada do avesso, abre-se para acolher os carros, sempre mais carros, para as pessoas poderem andar pelo “centro histórico” como quem anda dentro de um centro comercial. O Camões, o Terreiro do Paço, a Praça da Figueira, o Rossio das minhas deambulações de outrora, perdem-se entre tapumes, canos à mostra, pedregulhos e desalinho, obras inacabadas, passos perdidos, e o fantasma de Pessoa desertou o Cais do Sodré, atormentado pelo ruído dos caterpillars e os bares e restaurantes da moda. Lisboa moderniza-se, desenvolve-se, enriquece, abastece. Abastarda-se. Estaciona-se. Parece que querem destruir as árvores do Príncipe Real, e fazer um estacionamento subterrâneo. Não posso acreditar! E até o Patriarcado, li algures, vai prudentemente explorar um parque de estacionamento no Alto do Parque Eduardo VII, ao lado do Corte Inglês. Lisboa fica a ter mais um shopping para passear aos domingos.

Lisboa envelheceu mal, e fez o lifting errado. Gorda, inchada e rica, toda orgulhosa das suas lojas de luxo ao Chiado, enquanto vai matando os cafés e poluindo as fachadas dos prédios com placas dos bancos e caixas Multibanco. A decadência e a pobreza espreitam nos intervalos e rasgões no pano do novo-riquismo, e muita desta arquitectura ostensiva, mastodôntica e sul-americana no porte e na forma, contribui para dar à cidade o tom de uma Caracas melhorada.

Nos dias de chuva, quando o sol deixa de iluminar a fisionomia urbana, Lisboa mostra a sua face hedionda, o seu abandono, o seu desordenado plano. Sem habitantes por dentro, cheia de escritórios e assalariados que dela saem ao fim do dia, Lisboa não tem uma cultura de bairro e de comunidade, não tem uma Baixa, não tem um lugar de encontro e de passeio. Sem querer ser como as cidades italianas, Lisboa poderia ter tido, ao menos, a preocupação de não destruir a sua qualidade meridional. Lisboa amontoou-se em equívocos urbanísticos e projectos metropolitanos de dinheiro fácil. E os cidadãos de Lisboa, estirados, poluídos, desarranjados, não a amam nem a estimam. Despejam com gestos bruscos os cinzeiros dos carros nas ruas, enchendo o passeio de beatas, e deixam à porta saquinhos de supermercado com lixo, que nunca, oh nunca, cabem nos contentores camarários. Num dia de feriado, que seja pardo e de aguaceiro, Lisboa é lixo e cicatriz, é solidão e decrepitude, é melancolia e neurastenia. O sol não a liberta do Sentimento de um Ocidental. Lisboa repassada dos versos de Cesário Verde, sem a grandeza poética e sem o destino entrevisto no horizonte. Soturna e cheia do absurdo desejo de sofrer.

Eu detesto esta Lisboa moderninha e apressada, desumanizada, que vai expulsando o passado e os seus habitantes e construindo casas estrangeiradas, modas importadas, blocos de cimento, grandes superfícies. A cultura do automóvel matou Lisboa, e o condomínio fechado sobrepõe-se à arquitectura do bom-senso. É uma Lisboa pimba, um folheto de publicidade, um jogo da Lego.

Podia ter sido tudo tão diferente."
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[Clara Ferreira Alves, in Cidadania e Qualidade de Vida Contra a Exclusão, BE, 2001 (texto completo aqui)]

2.10.09

Pedro Ornelas: porque é que Campo de Ourique funciona e outros bairros não?

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"porque é que Campo de Ourique funciona e outros bairros não? Arrisco algumas hipóteses.
Primeiro, Campo de Ourique é suficientemente pequeno para ser percorrido a pé, e suficientemente grande para ter uma população apreciável (mais de 25 mil habitantes, se incluirmos a freguesia de Sta. Isabel). Esta 'massa crítica' é essencial para que os atributos da vida urbana funcionem -- anonimato qb, possibilidade de cada um ter a sua vida sem ser controlado, de encontrar potenciais amigos/as, namoradas/os com quem nos identifiquemos. É também essencial para viabilizar um comércio variado, que num bairro mais pequeno teria dificuldade em subsistir por falta de clientes. E o facto de poder ser facilmente percorrido a pé confere unidade ao bairro.
Segundo, Campo de Ourique tem um centro relativamente bem definido, um vago quadrilátero centrado no Jardim da Parada e que vai até às ruas principais Ferreira Borges e Saraiva de Carvalho. Ou seja, uma zona de sociabilidade mais activa, onde há todo o comércio que é preciso e que propicia o estabelecimento de relações.
Terceiro, o bairro obedece ao tradicionalíssimo esquema de malha ortogonal com quarteirões, com uma relação razoável entre a altura dos edifícios e a largura das ruas, e com o comércio estabelecido nas lojas dos prédios. Até prova em contrário, esta é a melhor forma urbana até hoje inventada.
Quarto, Campo de Ourique demarca-se facilmente do resto da cidade, sem que, ao mesmo tempo, haja uma descontinuidade. E é razoavelmente bem servido de transportes, embora não tenha metro (no entanto, interrogo-me se a ausência do metro não terá contribuído para manter o carácter residencial e evitar a terciarização que aflige outras zonas da cidade).
E pronto. Não me parece que haja grande mistério no sucesso de Campo de Ourique. Foi um bairro bem planeado, é tudo. O triste é que parece evidente que o urbanismo da segunda metade do século XIX era muito melhor que o de hoje."
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[Pedro Ornelas, O Céu Sobre Lisboa, 21-11-2005]

1.10.09

Miguel Sousa Tavares: o elogio de Campo de Ourique

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"Um bairro para viver tem de começar assim: com um mercado que é uma festa para os sentidos, um regresso aos sabores e aos cheiros que nos educaram. Campo de Ourique começa assim e continua depois, com tudo aquilo que faz deste bairro quase um milagre de espaço urbano perfeito: ruas largas, onde se passeiam casais, carrinhos de crianças e empregados no intervalo do almoço; comércio tradicional e personalizado, com algumas lojas ainda conhecidas pelo nome dos donos - a florista, o cabeleireiro, a loja de comida feita, o electricista, o oculista, a loja de ferragens, a papelaria-tabacaria, a casa das fechaduras, a loja de surf; e os cafés, com esplanadas conquistadas ao passeio e ao Millenium-BCP, com os seus quiosques de jornais cujos donos nos conhecem já tão bem que os dias nem sequer começariam sem o bom-dia deles. Campo de Ourique tem tudo isso, mais o jardim central, os seus pequenos restaurantes de culto, os seus excêntricos ou loucos já familiares a todos. Outras coisas felizmente não tem e muito do prazer de andar nestas ruas deve-se a essas ausências: prédios em altura e de fachadas preconceituosas, porteiros e seguranças de prédios, polícias de trânsito a tentar tornar a vida impossível. Aqui funciona como que uma auto-regulação da via pública, com um sentido natural de comunidade, em que ninguém se mete com os outros e toda a autoridade se torna dispicienda graças ao respeito mútuo pela liberdade de cada um.
[...]
Pensando na explosão de ódio e de revolta que agora se vive à roda das cidades francesas, naquelas comunidades inteiras de populações imigrantes que não se sentem ligadas cultural e afectivamente aos locais onde vivem, que vêem o bairro como uma prisão e a rua como um terreno de confronto, dou-me conta até que ponto Campo de Ourique (não sei se por gestação espontânea, se porque alguém planeou e previu bem as coisas) é um bairro modelar, em termos de integração social interclassista e intergeracional, de justo equilíbrio entre comércio, serviços e habitação, entre espaços públicos e privados. E, afinal, este tão raro exemplo de harmonia e qualidade de vida urbana não precisa de nenhuma grande construção de referência, nenhuma urbanização de encher o olho, nenhum centro comercial (antes pelo contrário, o segredo é não o ter), nenhuma piscina municipal nem pavilhão gimnodesportivo, nenhuma rotunda com canteiros e estátuas pseudomodernas, enfim, nada que encha o olho e que mostre dinheiros públicos ou fortunas privadas. Apenas bom senso, sentido de equilíbrio e proporção humana. Depois, as pessoas fazem o resto: andam na rua sem pressa nem atropelos, param para conversar à porta das lojas, saúdam-se nas esquinas, passeiam as crianças, os velhos ou os cães, namoram ou lêem o jornal nas esplanadas, almoçam a horas certas na sua mesa de sempre dos seus pequenos restaurantes, numa palavra, vivem a cidade, não se limitam a sofrê-la ou a passar por ela. Certamente que aqui também há gente triste, sozinha, com vidas terríveis. Mas, pelo menos, a rua não os agride: conforta-os, distrai-os e, acima de tudo, dá-lhes um sentido de pertença a uma comunidade - que hoje é coisa tão rara e tão preciosa numa cidade, como o são o peixe, a fruta e os legumes do mercado de Campo de Ourique.
Sei que este texto pode parecer um bocado absurdo, no meio desta eterna agitação em que vivemos. Mas trata-se de uma dívida de gratidão para com o "meu" bairro, que eu precisava de saldar um dia. E também, já agora e aproveitando a oportunidade, trata-se igualmente de um apelo que faço a quem manda e a quem pode: por favor, não estraguem Campo de Ourique! Não é preciso muito: basta não fazerem nada."
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[Miguel Sousa Tavares, Público, 11-11-2005]