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"Já não passeio a pé em Lisboa, porque os carros são tantos que corro o risco do atropelamento ou da intoxicação com dióxido de carbono. Ou será monóxido? Não interessa, respiramos fumo de escape. Ao fim da tarde, o bairro onde moro tapa os ouvidos por causa da sinfonia cacofónica de buzinas e motores a arrancar na grande marcha em direcção à auto-estrada. Durante o dia, alarmes de carros tocam desvairados, e o trânsito nunca pára o seu resfolegar de animal selvagem e enfurecido. O bairro perde a pouco e pouco a vida de bairro, os arrendamentos comerciais substituem os de habitação, não há onde estacionar, o pavimento tem buracos das chuvas e os preços aumentam por causa da fidalguia dos escritórios. Os escritórios andam povoados por meninos e meninas de fato completo de risca e saia-casacos pregueados, camisas e gravatas que discutem com avidez saldos e percentagens por entre duas trincadelas ao almoço, e cujos patrões, ou os serviçais deles, despejam na rua toneladas de lixo de papel que fica a voar todo o dia e ao fim-de-semana. Os caixotões da reciclagem, a transbordar, nunca são despejados, e parecem vir de um Terceiro Mundo a lembrar ao Primeiro que a Câmara tem mais que fazer. A sujidade da rua onde moro só diminui com a limpeza oficial das bátegas do Inverno, e amontoa-se no Verão, deixando no ar um odor a pó e fruta podre. Resiste o Jardim das Amoreiras, belo, sapiente, que os velhos e as crianças frequentam com medo de atravessar as ruas para lá chegar. Os carros, dentro e fora, acima e abaixo, ignoram-nos e quase os atropelam, e vejo muitas vezes no olho esgazeado do ancião, o terror de não conseguir chegar ao outro lado. As passadeiras têm carros em cima, os passeios têm carros em cima e as pessoas têm carros em cima. Nunca consigo escutar o som do silêncio. E já não vejo o rio, cada vez mais caro. Como dizem os agentes imobiliários: com vista de rio são mais dez mil contos.
Lisboa pertence, agora, a duas espécies de gente: os turistas e os suburbanos. Para os turistas, raça mais alegre, Lisboa alinda-se, constrói elevadores, ergue hotéis e patamares, pinta a cara de fresco. Para os suburbanos, raça mais tristonha, Lisboa constrói parques de estacionamento e centros comerciais. A cidade, esventrada e desfigurada, destruída e voltada do avesso, abre-se para acolher os carros, sempre mais carros, para as pessoas poderem andar pelo “centro histórico” como quem anda dentro de um centro comercial. O Camões, o Terreiro do Paço, a Praça da Figueira, o Rossio das minhas deambulações de outrora, perdem-se entre tapumes, canos à mostra, pedregulhos e desalinho, obras inacabadas, passos perdidos, e o fantasma de Pessoa desertou o Cais do Sodré, atormentado pelo ruído dos caterpillars e os bares e restaurantes da moda. Lisboa moderniza-se, desenvolve-se, enriquece, abastece. Abastarda-se. Estaciona-se. Parece que querem destruir as árvores do Príncipe Real, e fazer um estacionamento subterrâneo. Não posso acreditar! E até o Patriarcado, li algures, vai prudentemente explorar um parque de estacionamento no Alto do Parque Eduardo VII, ao lado do Corte Inglês. Lisboa fica a ter mais um shopping para passear aos domingos.
Lisboa envelheceu mal, e fez o lifting errado. Gorda, inchada e rica, toda orgulhosa das suas lojas de luxo ao Chiado, enquanto vai matando os cafés e poluindo as fachadas dos prédios com placas dos bancos e caixas Multibanco. A decadência e a pobreza espreitam nos intervalos e rasgões no pano do novo-riquismo, e muita desta arquitectura ostensiva, mastodôntica e sul-americana no porte e na forma, contribui para dar à cidade o tom de uma Caracas melhorada.
Nos dias de chuva, quando o sol deixa de iluminar a fisionomia urbana, Lisboa mostra a sua face hedionda, o seu abandono, o seu desordenado plano. Sem habitantes por dentro, cheia de escritórios e assalariados que dela saem ao fim do dia, Lisboa não tem uma cultura de bairro e de comunidade, não tem uma Baixa, não tem um lugar de encontro e de passeio. Sem querer ser como as cidades italianas, Lisboa poderia ter tido, ao menos, a preocupação de não destruir a sua qualidade meridional. Lisboa amontoou-se em equívocos urbanísticos e projectos metropolitanos de dinheiro fácil. E os cidadãos de Lisboa, estirados, poluídos, desarranjados, não a amam nem a estimam. Despejam com gestos bruscos os cinzeiros dos carros nas ruas, enchendo o passeio de beatas, e deixam à porta saquinhos de supermercado com lixo, que nunca, oh nunca, cabem nos contentores camarários. Num dia de feriado, que seja pardo e de aguaceiro, Lisboa é lixo e cicatriz, é solidão e decrepitude, é melancolia e neurastenia. O sol não a liberta do Sentimento de um Ocidental. Lisboa repassada dos versos de Cesário Verde, sem a grandeza poética e sem o destino entrevisto no horizonte. Soturna e cheia do absurdo desejo de sofrer.
Eu detesto esta Lisboa moderninha e apressada, desumanizada, que vai expulsando o passado e os seus habitantes e construindo casas estrangeiradas, modas importadas, blocos de cimento, grandes superfícies. A cultura do automóvel matou Lisboa, e o condomínio fechado sobrepõe-se à arquitectura do bom-senso. É uma Lisboa pimba, um folheto de publicidade, um jogo da Lego.
Podia ter sido tudo tão diferente."
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[Clara Ferreira Alves, in Cidadania e Qualidade de Vida Contra a Exclusão, BE, 2001 (texto completo aqui)]
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