31.10.07
A Guerra
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Depois de ver três episódios d’ A Guerra, de Joaquim Furtado (todas as terças-feiras na RTP1, a seguir ao Telejornal), parece-me claro que estamos perante um documento de invulgar qualidade, sem dúvida a melhor coisa que a RTP nos deu nos últimos tempos.
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A série terá no total 18 episódios – mais 6 ainda este ano e os restantes em 2008 – e é de louvar que esteja a passar em horário nobre.
30.10.07
dinheiro, família e igreja
"Mais do que conduzirem a uma reflexão crítica sobre o estado da escola pública, os supostos rankings escolares que alguns jornais e TVs tanto gostam de mostrar, parecem um exercício de descarado classismo. As melhores notas obtêm-se nas escolas mais caras e mais selectivas socialmente. Obrigado pela informação. Assim os pais dos miúdos que andam nas outras escolas todas ficam a saber que com dinheiro, família e igreja o sucesso é garantido." [...] "A obsessão de alguma media com os rankings vai sempre junto com editoriais sobre a liberdade de escolha das escolas, sobre a definição local de programas, sobre os cheques-escola, sobre a liberdade de educação e por aí fora. Trata-se, simplesmente, de criar o clima social para a conquista de um dos últimos mercados a retirar à coisa pública. O motivo ulterior é a evangelização mercantil."
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[Miguel Vale de Almeida em post n'Os Tempos Que Correm]
29.10.07
26.10.07
O velho bairro das Picoas
O PEQUENO CAFÉ ANTIQUADO
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Era um bairro de enormes apartamentos sombrios, explicações de Latim, intermináveis corredores, quartos interiores, altos andares sem elevador, árvores nalgumas ruas, muitos automóveis sempre, prostituição masculina na escada do centro comercial que foi, durante uns tempos, o mais elegante, o das prendas de Natal para a mãe, restaurantes pesados, com aqueles pernil de porco e feijoada à transmontana que fizeram os almoços de domingo; eram as Picoas.
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E sempre que por lá passo, vejo as melancólicas personagens de Maria Judite de Carvalho, mulheres inquietas regressando à sombra das suas casas, aos braços de improváveis maridos, costureiras, modistas, gente remediada ou burguesas em desequilíbrio, mulheres que foram à Baixa de autocarro e regressaram com umas compras que eram feitas na antiga Jerónimo Martins ou nas capelistas da Rua de São Nicolau, vejo-as ainda, nem tão velhas como isso, abrindo esta manhã o chapéu de chuva, que o tempo mudou. Vejo-as e vejo os maridos janotas regressando de empregos e das amantes aos fins de tarde burgueses, indo e vindo da Linha do Estoril de todos os perfumes.
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Por isso estranho estas ruas arremelgadas que agora atravesso a pé, ruas de nomes inseguros – Viriato, Tomás Ribeiro, Filipe Folque, Luís Bívar, qual delas é? perguntamos sempre – por onde tantos anos passei da adolescência e juventude, lendo e voltando das sessões de cinema do Monumental ou de teatros no Villaret, às vezes com o “Nouvel Observateur” debaixo do braço, que às quintas-feiras comprava no quiosque do Monte-Carlo, às vezes com amigos de faculdade, de liceu, gente do contra conspirando pelas esquinas da Maternidade Alfredo da Costa.
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Só há poucos meses entrei na Casa Museu Anastácio Gonçalves, a linda moradia de Norte Júnior, ali especada e rasgada pela bela janela que foi o ateliê de Malhoa. E gostei da exposição que lá estava, João Vaz, paisagista com algum mistério, gostei da casa, recôndita, secreta, vida de tantos tempos, tantos convívios, sobrevivente já antes de mim, aquela sua pompa ingénua fez-me sorrir.
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Ainda lá estarão, nalguns andares mais altos, os escuros quartos de velhas senhoras, que ainda pensam que o mundo gira à volta da chícara de chá pelas cinco da tarde e a cançoneta de crooner, gente esquecida em andares com pouca electricidade, ainda lá estarão os botões por colocar, a farda da criada por revirar, um romance francês, um Simenon em português, umas fotografias de casamentos ou de viagens a Espanha, talvez misturadas, agora, com revistas espanholas das que contam o nascimento da Infanta, como antes terá existido o “Paris-Match”. Mas será nos andares de cima, os esquecidos. Tudo o mais, neste bairro encafuado entre o Corte Inglês e o Saldanha de todos os feíssimos vidros novo-ricos, se remoçou, hotéis, escritórios, vidro aqui, prédio de serviços ali, lojas de xispêtêo, gourmets, coisas dessas que passam por ser cidade e mais aqueles prédios que se chamam Plaza e que costumam ficar em arrabaldes, cidades-satélite de Paris, por exemplo, e aqui contaminam o centro histórico, ai a destruição.
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Mas há gente por todo o lado nesta manhã fria, gente que conversa sobre horários, regalias, idas a despacho, sentenças, faltas, atrasos ao serviço, um bulício imenso de gente suburbana entre o croissant e o emprego, tanto guardanapo de papel envolvendo os bolos, conversando interminavelmente, entrando e saindo destes prédios rejuvenescidos, empinocados, janotas. E os passeios são estreitos para tanta gente, a conversa tem de subir de tom quando três pessoas vão ao lado, os papéis caem das pastas (compradas nos chineses) para a valeta encharcada. Estou no futuro, não me reconheço, manhã atravancada e polida nestes cafés abrilhantados, nestes locais de gente que não sei quem é nem saberei, gente agitada e tagarela.
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Recolhe-me a um café antigo, pequeno, de que me lembro das excelentes tranças, café que foi em frente de um andar onde viveu durante anos o José Mário Branco, café onde tantas vezes conversei com o Paulo Rocha, que vivia ao virar da esquina, café dos anos 70, pequenino, bom, nada bonito, de já velhos empregados atenciosos. E ouço, vinda de outra mesa, uma voz que reconheço, vinda do fim do tempo, voz de uma professora que tive na Faculdade, a Maria Elena Mira Meteus, e que, mesmo agora, reformada, guardou o seu tom de menina. Queria uma meia de leite, eram nove da manhã e ia para o cabeleireiro, sorriu ao ver-me, beijámo-nos à despedida, ainda rimos de estarmos vivos.
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E olha que o velho bairro das Picoas renasceu com a conversa com esta professora que, de vez em quando, cruzo. Voltou-me lentamente a antiga ida à leitaria, o livro lido ao pequeno-almoço, o modesto passar das horas corrigindo provas e teimando em ensinar, voltou-me o tempo da minha juventude, aquele bairro insólito voltou a ser meu. Mesmo sem a galeria que ali havia, a Quadrante, onde pela primeira vez expôs o Eduardo Batarda, onde vi os primeiros trabalhos de Ana Vieira, mesmo sem os locais por onde anda a sombra da conspiração dos anos 60, a sombra inquieta da gente do cinema dos anos 90 agrupando-se à volta do Paulo Rocha, tirando fotocópias, enviando protestos até às tantas, mesmo com tanta gente que por ali anda como se fosse noutra cidade, noutro país, senti-me em casa, voltei para dentro de mim.
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Fui à reunião matinal que tinha e voltei, passada uma hora, ao mesmo cafezinho com forte cheiro a farinha, manteiga e forno. E na mesma mesa onde estivera a professora que evocou comigo os tempos de faculdade, estava agora, folheando o jornal, um outro amigo meu de outros tempos (ou semi-amigo, pois nem íntimos somos, nem telefones trocámos), homem que admiro e sempre leio, intelectual, homem de acções e paradoxos vários, homem inteligente e afável, o Manuel Lucena. E com ele voltei a falar, a conversar, que bom encontrar gente de amanhã, ampara a vida.
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O dia vai indo e a vida entregou-se-me.
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
25.10.07
“Considero-me um homem culto”
Foi este o homem que Cavaco Silva entendeu ter o perfil adequado para Secretário de Estado da Cultura:
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K: Porque é que está sempre calado ao pé do Primeiro-Ministro? Porque é que quando foi para o Parlamento Europeu estava sempre calado, com ar de menino bem comportado atrás do professor Cavaco Silva? Porque é que quando está o Primeiro-Ministro se cala, sendo o Secretário de Estado da Cultura? Porque é que deixou, porque é que admitiu que fosse o Primeiro-Ministro a dizer aquelas coisas no Dia do Teatro? E porque é que não nos disse o que pensa, porque é que não falou para nós? Não sabemos nada do que é que pensa! Percebe? Não o conhecemos de parte nenhuma. O senhor não faz parte do nosso universo. Caiu, apareceu-nos aqui e ficámos todos, quer no teatro quer nas outras áreas, a dizer “mas o que é isto que agora nos apareceu?” E pronto. Tem 33 anos, não é nenhum velhadas horroroso, tem até bom aspecto, já é bom ...
P.S.L. Mas não pertenço ao universo ...
K: Não. Não tem nada a ver connosco.
P.S.L. Em relação a pertencer ao universo, eu isso já tive a oportunidade de conferir e estudar... Nenhum dos meus colegas da cultura, nas Comunidades Europeias ... Eu não sou sempre uno, pertenço ao que chama o universo ...
K: Mas não me respondeu: como é que caiu aqui?
P.S.L. Não sei, não é cair: foi o Primeiro-Ministro que se lembrou, que me convidou. E eu devo dizer: a cultura ... Vamos lá ver. .. aliás o doutor Lucas Pires, na sua opinião um Ministro da Cultura excelente ...
K: Na minha opinião.
P.S.L. Pronto, na sua opinião. Ele é originário até das mesmas áreas do que eu; é um homem da Universidade, da Faculdade de Direito, da ciência política exactamente de onde eu sou.
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K: Acha que tem vocação para ser Secretário de Estado da Cultura?
P.S.L. Acho... acho. Acho que um político não deve pensar que é capaz de executar todo e qualquer cargo, embora eu entenda a política ou tenha uma visão que muitas vezes os intelectuais não gostam. Eu julgo que um político tem de ser alguém com uma formação razoável ... uma formação e informação razoável e, depois deve ter uma capacidade de decisão e sentido político.
K: Acha que é um homem culto?
P.S.L. Considero-me um homem culto. Não... não... enfim. Não vou repetir afirmações incorrectas que algumas pessoas fizeram quando eu tomei posse, mas não me considero um intelectual, nem o pretendo ser. Ainda no outro dia dizia por graça ao Primeiro-Ministro, “Não pense que me tornei num intelectual que nunca fui”. E ele olhou para mim com uma cara tipo “Agora, também este!”... Mas enfim... é o lugar que eu mais gostei de ocupar até hoje. É um lugar fascinante.
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P.S.L. […] O meu amigo Marcelo Rebelo de Sousa punha-me constantemente na Olá! Então, as pessoas tinham a ideia que eu adorava festas sociais, que adorava jantares, cocktails ou recepções, que é uma coisa a que vou tão pouco quanto possível. Gosto muito de dançar e gosto muito da noite. Gosto imenso de estar acordado quando ninguém está. De andar em Lisboa, quando Lisboa está a dormir.
[excertos de uma entrevista de Pedro Santana Lopes a Graça Lobo, Kapa nº 1, Outubro de 1990]
24.10.07
Livros em Desassossego
Recomeça hoje a nova temporada de Livros em Desassossego, na Casa Fernando Pessoa. O tema de hoje é “Concentração Editorial: Perigos e Vantagens” e vão estar presentes João Amaral (do novo grupo de Paes do Amaral), António Lobato Faria (da Oficina do Livro), João Rodrigues (da Sextante) e Francisco Vale (da Relógio D’Água). Vai estar também Inês Pedrosa, a apresentar um novo romance. A moderação, como de costume, é de Carlos Vaz Marques.
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Vamos ter portanto “editores independentes” versus “grandes grupos editoriais” a discutir um tema muito relevante. Portugal tem assistido nos últimos tempos a uma preocupante concentração de editoras, o que não augura nada de bom.
23.10.07
A disneylandização da cidade
“A Zara de um lado e a sueca H&M disputam o mercado do giro-para-esta-semana, a Fnac vende livros que sei lá, agências de viagens prometem Cuba sem que se veja comunismo, a velha fábrica de mostarda também vende massa para cozer num minuto, as pizzarias sucedem-se, Massimo Dutti aqui, Springfield ali.
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Limpa, esta cidade esqueceu. Não o século XIV que continua a cobrar, renovadinho, para reformados, nem o século XVII, que especula no imobiliário. Mas esqueceu a sua vida, os seus amores e crimes, o bulício; as suas nódoas foram desinfectadas, espurgadas, rasuradas. Ouve-se Nelly Furtado pela rua. Uma mansa (violenta porque mansa) disneylandização rasurou a cidade para vender aos turistas que lá vão, hora a hora, do Van Eyck à Pizza Hut.
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Também quando, no outro dia, disse ao Miguel Borges: “encontramo-nos na esquina do Condes”, ele olhou para mim, olhou e disse “Onde?” como se eu fosse marciano.
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E é isso mesmo: fiquei marciano.
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É que também a “minha cidade” (a da esquina do Condes, do Monte-Carlo, do Monumental) já naufragou.”
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
22.10.07
Século Passado
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Século Passado, de Jorge Silva Melo é um livro excelente. Sendo constituído por textos que JSM foi escrevendo, a maioria para o Mil Folhas (suplemento do Público) mas também para o Público propriamente dito, para o Magazine Artes, para o Jornal de Letras, para a Epicur, entre outras publicações, acaba por funcionar no seu conjunto como uma espécie de livro de memórias. Memórias de uma geração e da sua Lisboa, dos seus filmes, dos seus livros, da sua política, das suas pessoas, enfim da sua cultura em sentido lato.
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Temos assim abundantes referências a pessoas como Glicínia Quartim, Mário Dionísio, Sophia de Mello Breyner, Miguel Lobo Antunes, Álvaro Lapa, Isabel de Castro ou Eduarda Dionísio; livros de Elio Vittorini, José Rodrigues Miguéis, Augusto Abelaira, Cesare Pavese ou Armando Silva Carvalho; filmes de Jacques Tati, John Ford, Raoul Walsh, Paulo Rocha, João César Monteiro ou Hitchcock; cidades como Madrid, Paris, Milão ou Berlim.
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E depois há essa Lisboa de outros tempos, vista com imensa nostalgia: os bairros das Picoas ou das Amoreiras, a Rua da Artilharia Um, os velhos cinemas desaparecidos (Lys, Rex, Royal, Tivoli, Éden, Monumental, São Jorge), os cafés, como o Monte-Carlo, o Liceu Camões ou a Livraria/Galeria 111.
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A edição é da Cotovia, lindíssima, de capa dura e com uma série de fotografias, embora com um preço pouco convidativo.
19.10.07
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
18.10.07
17.10.07
Jorge Silva Melo e João Bénard da Costa no Chiado
Jorge Silva Melo e João Bénard da Costa vão hoje falar sobre os seus recentes Século Passado (Cotovia) e Os Filmes da Minha Vida Vol. 2 (Assírio & Alvim), respectivamente. Vai ser na iniciativa “5 Livros, 5 Autores”, inserida na “Festa no Chiado”, e começa às 19h no Grémio Literário (Rua Ivens, nº 37).
16.10.07
Pó dos Livros
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Isto vem a propósito da inauguração recente se uma livraria, a Pó dos Livros, que fica na Av. Marquês de Tomar, nº 89, e que tem características pouco vulgares no nosso país. É uma pequena livraria que evita a última novidade light e aposta em fundos editoriais (encontrei algumas coisas curiosas) e num excelente atendimento. Tem um ambiente moderno e sofisticado, com uma decoração quase totalmente preta, e uma pequena cafetaria.
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Esperemos que tenha sucesso, a excessiva concentração económica no mundo do livro (e não só, claro) não é saudável, basta ver o caso recente da Bertrand, com as exigências absurdas que tem vindo a fazer aos editores.
Fátima
15.10.07
Tomai lá do O'Neill
12.10.07
Boa pergunta
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[Daniel Oliveira, no Arrastão]
11.10.07
Dennis McShade
O Que Diz Molero não foi o primeiro livro de Dinis Machado. Antes, já tinha escrito três policiais com o pseudónimo de Dennis McShade. Dinis Machado estava à frente da colecção de policiais Rififi, da editora Ibis, e propôs ao seu editor a escrita de três livros. Resultaram daqui Mão Direita do Diabo, publicado em 1967, Requiem por D. Quixote (1968) e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola (1968).
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Em Mão Direita do Diabo (único que li) acompanhamos Peter Maynard, assassino profissional, num policial bastante original, passado em várias cidades norte-americanas.
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Infelizmente, só em alfarrabistas é possível encontrar estes livros e mesmo assim com dificuldade. No ano em que se comemoram os 30 anos de O Que Diz Molero alguma editora podia aproveitar a embalagem e reeditar estes três. Ainda por cima o primeiro até comemora uns “redondos” 40 anos de aniversário.
10.10.07
O Que Diz Molero (4)
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JPG - O Luiz foi um dos grandes responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero. Como é isso se passou?
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LP - Eu estava em Massamá e tive a informação de que a Bertrand me queria editar a Obra Completa. Um dia fui à Bertrand, na Venda Nova, e encontrei o Dinis Machado, que foi gentilíssimo comigo e com o Paulo... encheu-o de álbuns, papel, livros... e deu-me as provas do Molero – portanto a minha crítica saiu no Diário Popular antes do livro estar à venda. No dia seguinte comecei a ler aquela merda, aquilo são dois gajos a discutir, e eu disse ao gajo onde estava o meu filho Paulo, o Henrique Garcia Pereira: “opá, eu estou fodido com este gajo, este gajo foi tão simpático comigo e com o meu filho, deu-me tanta merda, e agora isto é uma porcaria, não se percebe nada”. Até que de repente entrei na cegada da cena de porrada com os camones no Bairro Alto... aquilo tinha uma coisa, é que era um livro que já não era escrito com medo da censura, via-se que havia ali... o gajo não era nenhum novato, já tinha escrito 3 romances policiais... havia ali de repente uma força, porque estes gajos se tivessem um bocadinho de vergonha não publicavam os livros que publicaram durante o fascismo… bom, então escrevi o artigo “Descobri um Autor”. Só na semana seguinte é que o Molero saiu à venda. Estava na feira do livro e apareceu-me o Afonso Praça: “olha, comprei aquela coisa do Molero por causa da tua crítica, opá julguei que estavas a gozar, mas tinhas razão, aquilo é muito giro…” Depois disse muito mal do Reduto quase final, numa entrevista ao B.B. Um gajo também não escreve só obras-primas, há altos e baixos... Se um gajo vai a facilitar, a não pensar, se o gajo não é o leitor mais exigente de si mesmo, está fodido, tem a classificação que merece. Eu de facto não descobri autor nenhum, descobri um livro giro…
9.10.07
"um livro-bomba, uma obra d'arromba"
DESCOBRI UM AUTOR
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Um livro-bomba. Uma obra referenciada para gente nova. Contém cenas eventualmente chocantes aos literatos da nossa praça e já está. Não recomendável a ceguetas, que cinema («o cinema é um álbum, o mais fabuloso e embriagador dos álbuns imaginários», afirma o guarda da última fronteira) e banda desenhada (álbum ou folhetim semanal também fabuloso e embriagador, afirmo agora eu) passeiam-se muito pelas suas páginas. O Gaspar Simões não vai gostar (excelente coisa!). A malta vai (excelentíssima coisa!).
Podiam ser frases publicitárias. Quem ler «O QUE DIZ MOLERO», de Dinis Machado (Bertrand), por ruas e montras e olhos ávidos de maravilhados ou espavoridos leitores nos próximos dias, confirmará que não: é que é mesmo assim, como eu digo.
Fiquei banzado. Para já, para já, não julgava poder haver disto em português tão cedo. A livralhada de minha lavra envelheceu vinte anos a partir de hoje. Não faz mal. Faço 52 no sábado, se lá chegar, é tempo de reforma. Vou-me dedicar à pesca (de dólares, de marcos, como o nosso Primeiro), vou deixar a Associação Portuguesa de Escritores (é o deixas!, eu cá sei as linhas com que me coso) e ingressar no Mercado Comum dos Cravas. Felizmente não sou invejoso, cada um, cada geração cumpre a sua rábula e passa o facho. É a Lei.
Trouxe da minha experiência de editor o arrepio que é deparar-se-nos, de um autor desconhecido, de quem nada sabíamos ou lêramos, obra original, íssima, íssima, e autêntica (que agora aqui invejo é a Bertrand). Isto me dá, como leitor ou crítico (e o crítico que será senão um leitor especial, obrigado a botar sua opinião em público?) ou, até, escriba, uma real disponibilidade de captação de entusiasmo sincero e barulhento (começo a ferver, a explodir alegria) perante o novo (cf. o frisson nouveau causado pelo Baudelaire). Meus colegas de escrita, muitos e entre eles os mais celebrados da Hora, os vejo, os percebo, mordendo-se pelas costas, disputando-se editores e clientela, numa ciumeira pegada. Nunca me deu prá-i. Quando embirro com um escritor é porque ele escreve mal e me fez perder tempo, e havia tanta obra-prima que não li e já não vou ler. Chatos duma figa!
«O QUE DIZ MOLERO»: à abertura, comecei a ficar muito arreliado. «Mas que raio é isto?! Uma conversa entre um tal Austin e um Mister DeLuxe e logo a seguir uns burriés colados à parede para secar… mau, mau. Temos estopada.» Mas segui viagem, página a página. E comecei a ficar contagiado, envolvido. Daí em diante, uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata o sintimento nos momentos doloridos (ex.: a morte e o funeral de César), mas tudo tão perto de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.
Não tenho a mínima pretensão de sequer revelar, no pouco espaço que me é concedido, uma breve ideia do que seja «O QUE DIZ MOLERO». É este excessivo para se reduzir. Deturpava, por certo. Assim, e muito esquematicamente, irei limitar-me ao que me parece ali mais relevante.
A cena de pancadaria entre o Ângelo, «danado para a porrada», e os camones (e já antes com os ciganos) que provocavam girls naquele bairro pobre e a ressaca do festival de mocada que o Ângelo lhes proporcionou é, pelo movimento, pelo achado dos detalhes, pela embalagem descabelada mas a rigor, um morceau de bravoure, que ficará (para mim não restam dúvidas) como das coisas mais bem conseguidas da nossa literatura. É humor, é violência álacre, é cinema escrito, recorda-me, superando-o, uma cena de um romance de Beckett («Murphy»? «Molloy»? Tive os livros, tive de os vender (comer), não consigo localizar a cena. É uma zaragata entre bêbados, jogando a pontapés um saco de cinzas de um amigo morto. O leitor que ajude. Diga para cá onde é) – não estou a exagerar.
Também na parte imaginária do livro há umas páginas (162-166) um pouco forçadas ou esforçadas no tom (mas não será propositado?), pois já li daquilo não sei onde (ou saberei?), o texto que o rapaz entrega, no Tibete, ao dono da loja de ferragens, por sinal dono do único cão azul conhecido na região, é agora em lírico, dos mais belos do volume. Não esqueço, claro, os poemas que nele se entroncam e o trecho (págs. 65-66) aliciante de imagens e de contenção comovente, outro ponto alto do relatório de Molero.
Uma teoria que me ocorreu, e não posso aqui desenvolver, é se Dinis Machado não usou, entre outras, uma finta: dos quatro protagonistas, o rapaz que apenas conhecemos pelo que diz Molero, e já interpretado por este nas suas divagações e comentários; o rapaz, de que nem o nome ficamos a saber e se some, desaparece no ar como o Mandrake, voilá Molero, que é por sua vez explicado, traduzido, por Austin que transmite a Mister DeLuxe, o qual, hierarquicamente superior e filosofante, extrai sempre uma conclusão teórica, uma síntese ideológica, desse contraponto surgiu-me a suspeita de que a osmose dos quatro era mais perfeita daquilo que se nos apresenta. Que eram um em quatro, e os quatro quase heterónimos do Autor, cúpula mal escondida nos bastidores da intriga («tudo o que criamos é apenas o que somos», está lá escarrapachado).
Um breve senão: a meu entender, o A. Fornece em demasia pistas escusadas. As referências a Pessoa, Pessanha, Breton, Beckett, etc., se podem ser muito do agrado de literatos enfadam o leitor medianamente informado. Eu já tinha detectado aquele quarteto, e mais: um que Dinis Machado não cita, parece-me, e muito injustamente: o Almada do «Nome de Guerra» e ainda mais o Almada da «Engomadeira», que – baba-te, Dinis Machado! – é texto que «O QUE DIZ MOLERO» por assim dizer continua, saltando por cima de meio século de literatura parva, imitada, gaga prosa que se retrogradou ao Júlio Diniz e parece filha de «O Feliz Independente»… Também o Cesariny de «Corpo Visível» ou do «Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos» por ali corre.
Outro: as mui discretas, quase sumidas no contexto, alusões à situação política nacional, num momento particularmente crítico (a acção decorre durante a Segunda Guerra Mundial e seu termo). O herói positivo seria apenas o Bigodes Piaçaba, «que era contra o Governo». Tão-pouco se acredite, apesar da discrição, na indiferença ou inocência da obra; pois num comentário de Mister DeLuxe se pode ler esta carapuça, a enfiar sem disfarces nos nossos políticos pluralistas (e outros, mais à direita): «é óbvio que a autoridade dos líderes assenta quase sempre sobre autênticas puerilidades.» Valeu!
Repito e finalizo: um livro-bomba, uma obra d’arromba.
8.10.07
O Que Diz Molero (2)
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[Dinis Machado, in O Que Diz Molero, Bertrand, 2007]
4.10.07
O Que Diz Molero
Comemoram-se este ano os 30 anos de O Que Diz Molero, de Dinis Machado, com o escritor a ser alvo de diversas homenagens. A Bertrand lançou esta bonita edição comemorativa, com ilustrações de António Jorge Gonçalves.
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O livro é fabuloso e merece todos os elogios que recebeu e continua a receber. Tem uma escrita contagiante, com um toque surrealista, e uma estrutura muito original: Mister DeLuxe e Austin lêem e comentam um relatório de Molero sobre o “rapaz”, tudo isto de uma forma algo policial, sem nunca se chegar a saber quem são exactamente estas personagens. O relatório centra-se sobretudo na infância do “rapaz”, num bairro típico de Lisboa, durante os anos 30/40 (é preciso não esquecer que Dinis Machado viveu no Bairro Alto desde que nasceu, em 1930, até aos anos 60). Deparamo-nos assim com uma diversidade de figuras fascinantes: o Zuca, o Bigodes Piaçaba, o Peida Gadocha, o Descoiso, o Vampiro Humano ou os Vai-ou-Racha. A cena de uma autêntica batalha campal com um grupo de “camones” é absolutamente delirante. Temos depois uma parte, quanto a mim menos interessante, sobre as posteriores deambulações do “rapaz” pelo mundo.
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Foi um livro que, não sei se revolucionou a literatura portuguesa como por vezes é referido, mas certamente influenciou muitos escritores e abriu novos caminhos e ainda hoje, passados 30 anos, se lê com muito agrado.
3.10.07
Ora isto é uma doença, tão doença como uma gastrite. Ou, se quiserem, uma condição permanente, como sofrer de sinusite. Neste episódio eu era uma criança, mas em todas as épocas me lembro de casos assim. Se pudesse, evitava entrar em contacto com uma pessoa desconhecida ou pouco conhecida. Subi e desci avenidas erradas (mesmo em território estrangeiro) apenas para não ter de pedir uma indicação. Comprei o que não queria em supermercados porque não perguntei onde estava o que procurava. Deixei de almoçar vezes sem conta só para não encetar um temível diálogo com a empregada. Sempre que me põe à frente um ignoto concidadão, eu embatuco. Não comunico, olho para os ladrilhos, perco o pio, faço de astucioso Ulisses o possível para não termos de entrar em concílio.
Um dos problemas maiores da timidez é que por vezes parece aos outros um defeito de carácter. O tímido é um menino da mamã (tese proustiana). Ou então um arrogante, que detesta toda a gente e se enclausura na sua carapaça. Ora, creio que em geral o tímido sofre com a sua timidez, e tem vontade de contacto como toda a gente. Reparem: eu sou, e gosto de ser, uma pessoa discreta e reservada. Não cultivo a menor ambição de acordar no próximo sábado festivo como um jamaicano. Estou muito satisfeito com a circunspecção, a introspecção e outras cólicas do espírito. Mas não desgostava de cumprimentar as pessoas sempre que entro nalguma sala (em vez de observar a carpete gasta). Como não me desprazia uma cavaqueira com um colega de viagem ou com alguém que ficasse sentado ao meu lado num repasto (em vez de me refugiar nos classificados da Arrentela ou no cardápio de peixes grelhados). Eu sou aquele típico pateta que numa festa se esgancha contra uma coluna, de copo alto meio vazio, olhando para toda a gente como se fossem fantasmas translúcidos. E é melhor nem entrar no capítulo «sexo oposto» (mais conhecido como «o oposto do sexo»). Dos quinze anos aos trinta e dois, a minha timidez é quem mais ordena. E ordena sempre que me mantenha quieto e calado. Que não manifeste interesse ou intenção. Nem que a moça se pareça com a Cameron Diaz, tenha sido deixada pelo namorado há dez minutos e use um cartaz fosforescente em que pede conforto masculino.
Por essa e por outras é que acho que a timidez é uma doença. Por causa da timidez não fazemos imensas coisas. E nós morremos de remorsos pelo que fizemos mas sobretudo com remorsos por tudo o que deixámos passar. É um comboio que se põe em andamento e acaba com o momento propício (procurem o poema de Thomas Hardy Faintheart in a Railway Train). A timidez acaba connosco. Com uma enganadora gentileza. Os ingleses costumam dizer que uma pessoa é «dolorosamente tímida» (painfully shy). E dizem bem, porque se trata de um sofrimento oculto mas realíssimo. Um tímido fica preso a si mesmo, não se mexe, é um invisível que se vê. E sofre por querer o contrário do que mostra (que é nada)."
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[Pedro Mexia, in Primeira Pessoa, Casa das Letras, 2006]