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AMOR DE PERDIÇÃO
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Meio século após a primeira referência legislativa, quatro décadas depois da entrada em actividade e dezoito anos passados sobre a instalação em sede própria, a Cinemateca Portuguesa tem à sua frente um homem entusiasmado. João Bénard da Costa acredita no cinema português. Na conservação do seu passado e na produção que aí virá. E com alguém que pensa serem cinematográficas as melhores imagens que reflectem este país, esta não podia deixar de ser uma conversa, também, sobre Portugal.
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Em 58 dá-se o fenómeno Delgado, e o cineclubismo está no auge. Que expectativas tinham os cinéfilos em relação ao nascimento da Cinemateca?
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Muitíssimas. Durante os anos 50 apareceram dezenas de cineclubes muito politizados. O cinema é usado como uma arma na batalha de ideias. Participar nas sessões do cineclube era um acto de resistência contra o regime. Ora bom, os cineclubes tinham muito poucos filmes para escolher, para ilustrar estas ideias. Daí, que, quando se começou a falar da criação de uma cinemateca, se pensasse ser a ocasião para que esses filmes pudessem ser vistos. A cinemateca seria para os cineclubes uma óptima fonte para se abastecerem com filmes. É claro que isto se opunha ao critério básico de qualquer cinemateca: uma cinemateca existe para conservar e não para emprestar. E daí uma certa delicadeza na questão, que se sente muito nos anos 50. Se vamos iniciar uma política desse género, não só nunca vai haver uma cinemateca, como, e agora entrava o raciocínio político, a cinemateca vai servir de instrumento
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Como é que se chega a 63 e ao Cinema Novo? Há alguma ligação entre o cineclubismo, a Cinemateca e o aparecimento de Cunha Telles, Fernando Lopes ou Paulo Rocha?
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Em relação ao cineclubismo há com certeza. Todos eles participaram neste movimento. Em relação à cinemateca, não. A relação que normalmente se estabelece, por exemplo, entre a cinemateca francesa e o início da nouvelle vague não pode aqui estabelecer-se. Não foram certamente os ciclos virados sobretudo para o passado do cinema português que alimentaram essa primeira geração. O que actuou sobre esses realizadores foi a sua entrada no movimento cineclubista, e, depois, no estrangeiro, graças a bolsas que lhes permitiram frequentar a Cinemateca Francesa ou o National Film Theatre, em Londres. Outra coisa é que para uma segunda geração do Cinema Novo Português, a que se desenvolve sobretudo entre 70 e 74, há uma atenção muito grande a alguns ciclos da cinemateca organizados nos anos 60, sobretudo um de 65 sobre o cinema mudo americano, dando a ver, ou a rever, filmes do Griffith, do Stronheim, do King Vidor. Alguns futuros realizadores, por exemplo o Alberto Seixas Santos e o António Pedro Vasconcelos, apoiam extraordinariamente essa manifestação. Chegaram a dizer: «este é o acontecimento cultural mais importante que se passa em Portugal desde o aparecimento do Orpheu.»
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Nos anos 60 vive-se uma abertura em termos culturais. O Cinema Novo foi importante para essa abertura?
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Eu não diria «vive-se uma abertura». A partir de meados dos anos 60, a partir do começo da guerra colonial, a censura aperta. Culturalmente, é uma década extraordinariamente repressiva. O que acontece é que, apesar de tudo, o País evoluiu em termos económicos. Isso trouxe muito mais gente alfabetizada, com preocupações culturais. E essas pessoas procuram formas novas. Por muito que se quisesse filtrar, tudo tinha aqui um eco evidente e imediato numa camada intelectual, crescentemente oposta ao regime, e que portanto identificava essa luta por uma libertação cultural com a luta contra o regime.
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Nesse momento aparecem novos escritores, uma nova poesia, e politicamente surge a extrema-esquerda. O novo cinema português integra-se nesse movimento?
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Meio século após a primeira referência legislativa, quatro décadas depois da entrada em actividade e dezoito anos passados sobre a instalação em sede própria, a Cinemateca Portuguesa tem à sua frente um homem entusiasmado. João Bénard da Costa acredita no cinema português. Na conservação do seu passado e na produção que aí virá. E com alguém que pensa serem cinematográficas as melhores imagens que reflectem este país, esta não podia deixar de ser uma conversa, também, sobre Portugal.
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Em 58 dá-se o fenómeno Delgado, e o cineclubismo está no auge. Que expectativas tinham os cinéfilos em relação ao nascimento da Cinemateca?
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Muitíssimas. Durante os anos 50 apareceram dezenas de cineclubes muito politizados. O cinema é usado como uma arma na batalha de ideias. Participar nas sessões do cineclube era um acto de resistência contra o regime. Ora bom, os cineclubes tinham muito poucos filmes para escolher, para ilustrar estas ideias. Daí, que, quando se começou a falar da criação de uma cinemateca, se pensasse ser a ocasião para que esses filmes pudessem ser vistos. A cinemateca seria para os cineclubes uma óptima fonte para se abastecerem com filmes. É claro que isto se opunha ao critério básico de qualquer cinemateca: uma cinemateca existe para conservar e não para emprestar. E daí uma certa delicadeza na questão, que se sente muito nos anos 50. Se vamos iniciar uma política desse género, não só nunca vai haver uma cinemateca, como, e agora entrava o raciocínio político, a cinemateca vai servir de instrumento
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Como é que se chega a 63 e ao Cinema Novo? Há alguma ligação entre o cineclubismo, a Cinemateca e o aparecimento de Cunha Telles, Fernando Lopes ou Paulo Rocha?
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Em relação ao cineclubismo há com certeza. Todos eles participaram neste movimento. Em relação à cinemateca, não. A relação que normalmente se estabelece, por exemplo, entre a cinemateca francesa e o início da nouvelle vague não pode aqui estabelecer-se. Não foram certamente os ciclos virados sobretudo para o passado do cinema português que alimentaram essa primeira geração. O que actuou sobre esses realizadores foi a sua entrada no movimento cineclubista, e, depois, no estrangeiro, graças a bolsas que lhes permitiram frequentar a Cinemateca Francesa ou o National Film Theatre, em Londres. Outra coisa é que para uma segunda geração do Cinema Novo Português, a que se desenvolve sobretudo entre 70 e 74, há uma atenção muito grande a alguns ciclos da cinemateca organizados nos anos 60, sobretudo um de 65 sobre o cinema mudo americano, dando a ver, ou a rever, filmes do Griffith, do Stronheim, do King Vidor. Alguns futuros realizadores, por exemplo o Alberto Seixas Santos e o António Pedro Vasconcelos, apoiam extraordinariamente essa manifestação. Chegaram a dizer: «este é o acontecimento cultural mais importante que se passa em Portugal desde o aparecimento do Orpheu.»
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Nos anos 60 vive-se uma abertura em termos culturais. O Cinema Novo foi importante para essa abertura?
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Eu não diria «vive-se uma abertura». A partir de meados dos anos 60, a partir do começo da guerra colonial, a censura aperta. Culturalmente, é uma década extraordinariamente repressiva. O que acontece é que, apesar de tudo, o País evoluiu em termos económicos. Isso trouxe muito mais gente alfabetizada, com preocupações culturais. E essas pessoas procuram formas novas. Por muito que se quisesse filtrar, tudo tinha aqui um eco evidente e imediato numa camada intelectual, crescentemente oposta ao regime, e que portanto identificava essa luta por uma libertação cultural com a luta contra o regime.
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Nesse momento aparecem novos escritores, uma nova poesia, e politicamente surge a extrema-esquerda. O novo cinema português integra-se nesse movimento?
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É evidente. A vontade desses autores era semelhante àquela que se manifestava na literatura, na pintura, e em todas as outras artes. E há um outro ponto muito importante, que não podemos esquecer, a actuação da Fundação Gulbenkian. A Gulbenkian inicia actividades que começam a ter uma grande repercussão nos anos 60, sobretudo no domínio das artes plásticas e da música, e, portanto, a ter pela primeira vez meios de actualização que permitem um contacto directo, em Portugal, com o que de mais moderno se estava a fazer na Europa.
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Que dá também um empurrão ao Cinema Novo, com o Plano Gulbenkian.
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O cinema português não aparece com os mesmos títulos de nobreza da pintura ou da música, mas quando aparecem autores a afirmar a vontade de fazer um cinema em que essas mesmas preocupações tenham tradução, isso tem repercussões e leva a Gulbenkian a decidir apoiar o cinema e a fazer o plano de apoio que vigora sensivelmente entre 70 e 74.
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Como definiria até 74, essas temáticas?
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Todos têm uma consciência política, e todos são homens da oposição, mas eles sabem também que não podem nunca fazer aqui um cinema directamente político. Um filme mais político envolveria o fim da carreira ou a prisão. Nesse sentido não arriscaram. A mensagem política tinha de ser sempre elíptica. Além disso, todos esses homens participam da consciência, muito dos anos 60, de que «a arte é, não serve», e que, portanto, o pior que pode acontecer a um artista é colocar-se ao serviço de uma causa qualquer. O que os distingue é uma consciência estética elevada, uma preparação cultural muito diferente do que tinham tido os seus antecedentes, e a vontade de exprimir a sua visão de Portugal em filmes que dessem um pouco essa imagem de país cercado, sufocado. E daí, por exemplo, quando nós vemos filmes como Verdes Anos, Belarmino, Mudar de Vida, etc., vemos que a realidade que se mostra neles é qualquer coisa de completamente diferente do que se tinha visto até então no cinema português. O que se mostra é uma sociedade claustrofóbica, murada, de onde as pessoas se queriam evadir e não conseguiam.
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A revolução representa um retrocesso nesse movimento estético?
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Representa uma paragem. Há um grande entusiasmo no início dos anos 70. Esse entusiasmo é maior ainda quando em 73, nas vésperas da revolução, o Estado, sentindo que não podia alhear-se do movimento, transforma completamente a sua política: cria o Instituto Português de Cinema. É anunciado um plano de apoio que basicamente contemplava os mesmos nomes que tinham emergido nos anos 60 e nos chamados anos Gulbenkian. Parece um movimento que finalmente vai poder desenvolver-se com continuidade. O Plano estava a começar nesta altura, e quando os cineastas se preparavam para filmar, chega o 25 de Abril. E aí há uma mutação evidente, toda a gente vem para a rua filmar a revolução, têm-se ideias que correram muito aquele período revolucionário: o cinema directo, filmar na rua, filmar a realidade, filmar em 16 mm.
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Qual era o papel da cinemateca no contexto revolucionário?
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Era muito secundário. Todos falam em desenvolver a cinemateca, trazer para a cinemateca os grandes filmes para o povo. Ou seja, há uma vontade de transformar o organismo, mas essa vontade exprime-se e toma corpo na lei só em 1980, quando a Cinemateca Nacional é transformada em Cinemateca Portuguesa e pela primeira vez é dotada de autonomia administrativa e financeira, de uma sede e sala de cinema própria.
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Em 1980, há uma série de filmes, como o Oxalá!, o Kilas, a Manhã Submersa. Eles iniciam uma nova fase do cinema português?
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Bom, no final dos anos 70 e inícios de 80 assiste-se a um movimento de opinião importante que está ligado a dois factores: primeiro, um certo desencanto com a revolução e com o período revolucionário. Em segundo lugar, a ideia de que os filmes de intervenção não conquistavam público nenhum. Portanto, o que se queria era voltar a um cinema normal, que contasse histórias. E então começam a aparecer esses slogans que presidem à estreia do Kilas, «por que é que o cinema português é tão chato?». Vamos caminhar para uma produção mais corrente e conquistar de novo alguns êxitos de público.
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E criar uma indústria?
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Aí voltou-se a falar sobre se há ou não, em Portugal, condições para criar uma indústria cinematográfica. Curiosamente e ao longo de todos estes anos, o que temos assistido é a um cinema sempre maioritariamente apoiado no Estado, através dos organismos competentes, e que não poderia existir sem esse apoio oficial, porque não se concebe em Portugal um cinema que se pague a si próprio, na bilheteira.
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Para os números de bilhetes vendidos que seriam necessários é um bocado ocioso estar-se sequer a falar nisso…
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É uma ideia completamente vã, irrealista. De qualquer ponto de vista que se considere o fenómeno, para haver uma indústria, ela precisa de encontrar um mercado de escoamento. Ora, mesmo num filme que faça em Portugal um grande sucesso de bilheteira, que chegue a números para Portugal espantosos de 300 mil, 400 mil espectadores, isso significa um terço do orçamento. Diz-se: e o estrangeiro? O estrangeiro pode interessar-se e tem-se interessado em determinados meios culturais, mais elitistas, por um cinema português chamado de autor, ou seja, um cinema que aparece como diferente, curioso, com uma especificidade muito própria. Esse cinema pode interessar em pequenos circuitos. Mas o estrangeiro interessa-se muito pouco por filmes que têm características medianas da indústria cinematográfica, menos meios, e que, portanto, são sempre secundarizados face às produções semelhantes de cada país. Daí que esses filmes normalmente, mesmo com grandes sucessos em Portugal, são filmes que no estrangeiro vão ter uma carreira muito fraca.
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Apesar dessa corrente, apareceram nos últimos 18 anos cineastas como João Mário Grilo, João Botelho, Jorge Silva Melo, mais tarde Pedro Costa. O que trouxeram de novo estes cineastas?
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Portugal tem uma continuidade, que vem desde os anos 60, em que se afirmam uma série de personalidades, autores de obras extremamente coerentes.
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Mas o João Mário Grilo, no final dos anos 70, princípio dos anos 80, participa num manifesto de ruptura.
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Sim, está bem. Isso corresponde a momentos geracionais diferentes, mas todos eles entram naquilo a que os seus adversários chamam pejorativamente um «cinema de autor», ou seja, todos eles procuram realizar obras sem transigências em relação aos chamados valores comerciais, e aí têm uma liberdade total para exprimir a sua visão do mundo.
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Num país que 30 anos depois do Cinema Novo está tão diferente, como explica que filmes como os de Pedro Costa ou de Teresa Villaverde sejam ainda tão cheios da tristeza que habita os filmes do cinema português dos anos 80?
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Isso não acontece só no cinema. Acontece na literatura, na pintura. Ou seja, isso continua a espelhar qualquer coisa que existe, que continua a existir e que é, digamos, um traço de um pequeno país, ainda bastante periférico em relação à Europa, embora crescentemente inserido nela, e atravessado por profundas transições e por uma cultura contrastante, onde esse traço de amargura é muito visível.
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Quais são, neste momento, os cineastas portugueses de quem mais espera?
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Espero de muitos. Espero do Manoel de Oliveira, que com 90 anos continua em plena forma, e espero muito do Paulo Rocha, do João César Monteiro, do João Botelho, do Jorge Silva Melo, do Alberto Seixas Santos, do João Mário Grilo, do Pedro Costa, entre muitos outros, cujas obras são extremamente interessantes, polémicas, estimulantes, e representam hoje, mais do que isso, num panorama cinematográfico muito cinzento e crescentemente marcado pelas suas características de consumo, qualquer coisa de diferente. Representam uma aposta no cinema como arte, na autonomia de uma arte cinematográfica, e são filmes que continuam a ser um grande desafio estético e ético.
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Regressemos ao princípio. Como é que a Cinemateca vai viver os próximos anos?
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A Cinemateca passou por grandes transformações desde 1980. A primeira foi a de ter autonomia, ter uma sala, etc. Aumentou muito a sua colecção, temos cerca de 10 mil filmes, e, sobretudo, foi dotada com uma estrutura nova, o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, onde pela primeira vez pudemos conservar filmes. Ou seja, as infra-estruturas estão lançadas para que a cinemateca seja o que uma cinemateca é ou deve ser: um museu de cinema.
É evidente. A vontade desses autores era semelhante àquela que se manifestava na literatura, na pintura, e em todas as outras artes. E há um outro ponto muito importante, que não podemos esquecer, a actuação da Fundação Gulbenkian. A Gulbenkian inicia actividades que começam a ter uma grande repercussão nos anos 60, sobretudo no domínio das artes plásticas e da música, e, portanto, a ter pela primeira vez meios de actualização que permitem um contacto directo, em Portugal, com o que de mais moderno se estava a fazer na Europa.
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Que dá também um empurrão ao Cinema Novo, com o Plano Gulbenkian.
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O cinema português não aparece com os mesmos títulos de nobreza da pintura ou da música, mas quando aparecem autores a afirmar a vontade de fazer um cinema em que essas mesmas preocupações tenham tradução, isso tem repercussões e leva a Gulbenkian a decidir apoiar o cinema e a fazer o plano de apoio que vigora sensivelmente entre 70 e 74.
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Como definiria até 74, essas temáticas?
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Todos têm uma consciência política, e todos são homens da oposição, mas eles sabem também que não podem nunca fazer aqui um cinema directamente político. Um filme mais político envolveria o fim da carreira ou a prisão. Nesse sentido não arriscaram. A mensagem política tinha de ser sempre elíptica. Além disso, todos esses homens participam da consciência, muito dos anos 60, de que «a arte é, não serve», e que, portanto, o pior que pode acontecer a um artista é colocar-se ao serviço de uma causa qualquer. O que os distingue é uma consciência estética elevada, uma preparação cultural muito diferente do que tinham tido os seus antecedentes, e a vontade de exprimir a sua visão de Portugal em filmes que dessem um pouco essa imagem de país cercado, sufocado. E daí, por exemplo, quando nós vemos filmes como Verdes Anos, Belarmino, Mudar de Vida, etc., vemos que a realidade que se mostra neles é qualquer coisa de completamente diferente do que se tinha visto até então no cinema português. O que se mostra é uma sociedade claustrofóbica, murada, de onde as pessoas se queriam evadir e não conseguiam.
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A revolução representa um retrocesso nesse movimento estético?
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Representa uma paragem. Há um grande entusiasmo no início dos anos 70. Esse entusiasmo é maior ainda quando em 73, nas vésperas da revolução, o Estado, sentindo que não podia alhear-se do movimento, transforma completamente a sua política: cria o Instituto Português de Cinema. É anunciado um plano de apoio que basicamente contemplava os mesmos nomes que tinham emergido nos anos 60 e nos chamados anos Gulbenkian. Parece um movimento que finalmente vai poder desenvolver-se com continuidade. O Plano estava a começar nesta altura, e quando os cineastas se preparavam para filmar, chega o 25 de Abril. E aí há uma mutação evidente, toda a gente vem para a rua filmar a revolução, têm-se ideias que correram muito aquele período revolucionário: o cinema directo, filmar na rua, filmar a realidade, filmar em 16 mm.
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Qual era o papel da cinemateca no contexto revolucionário?
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Era muito secundário. Todos falam em desenvolver a cinemateca, trazer para a cinemateca os grandes filmes para o povo. Ou seja, há uma vontade de transformar o organismo, mas essa vontade exprime-se e toma corpo na lei só em 1980, quando a Cinemateca Nacional é transformada em Cinemateca Portuguesa e pela primeira vez é dotada de autonomia administrativa e financeira, de uma sede e sala de cinema própria.
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Em 1980, há uma série de filmes, como o Oxalá!, o Kilas, a Manhã Submersa. Eles iniciam uma nova fase do cinema português?
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Bom, no final dos anos 70 e inícios de 80 assiste-se a um movimento de opinião importante que está ligado a dois factores: primeiro, um certo desencanto com a revolução e com o período revolucionário. Em segundo lugar, a ideia de que os filmes de intervenção não conquistavam público nenhum. Portanto, o que se queria era voltar a um cinema normal, que contasse histórias. E então começam a aparecer esses slogans que presidem à estreia do Kilas, «por que é que o cinema português é tão chato?». Vamos caminhar para uma produção mais corrente e conquistar de novo alguns êxitos de público.
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E criar uma indústria?
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Aí voltou-se a falar sobre se há ou não, em Portugal, condições para criar uma indústria cinematográfica. Curiosamente e ao longo de todos estes anos, o que temos assistido é a um cinema sempre maioritariamente apoiado no Estado, através dos organismos competentes, e que não poderia existir sem esse apoio oficial, porque não se concebe em Portugal um cinema que se pague a si próprio, na bilheteira.
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Para os números de bilhetes vendidos que seriam necessários é um bocado ocioso estar-se sequer a falar nisso…
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É uma ideia completamente vã, irrealista. De qualquer ponto de vista que se considere o fenómeno, para haver uma indústria, ela precisa de encontrar um mercado de escoamento. Ora, mesmo num filme que faça em Portugal um grande sucesso de bilheteira, que chegue a números para Portugal espantosos de 300 mil, 400 mil espectadores, isso significa um terço do orçamento. Diz-se: e o estrangeiro? O estrangeiro pode interessar-se e tem-se interessado em determinados meios culturais, mais elitistas, por um cinema português chamado de autor, ou seja, um cinema que aparece como diferente, curioso, com uma especificidade muito própria. Esse cinema pode interessar em pequenos circuitos. Mas o estrangeiro interessa-se muito pouco por filmes que têm características medianas da indústria cinematográfica, menos meios, e que, portanto, são sempre secundarizados face às produções semelhantes de cada país. Daí que esses filmes normalmente, mesmo com grandes sucessos em Portugal, são filmes que no estrangeiro vão ter uma carreira muito fraca.
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Apesar dessa corrente, apareceram nos últimos 18 anos cineastas como João Mário Grilo, João Botelho, Jorge Silva Melo, mais tarde Pedro Costa. O que trouxeram de novo estes cineastas?
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Portugal tem uma continuidade, que vem desde os anos 60, em que se afirmam uma série de personalidades, autores de obras extremamente coerentes.
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Mas o João Mário Grilo, no final dos anos 70, princípio dos anos 80, participa num manifesto de ruptura.
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Sim, está bem. Isso corresponde a momentos geracionais diferentes, mas todos eles entram naquilo a que os seus adversários chamam pejorativamente um «cinema de autor», ou seja, todos eles procuram realizar obras sem transigências em relação aos chamados valores comerciais, e aí têm uma liberdade total para exprimir a sua visão do mundo.
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Num país que 30 anos depois do Cinema Novo está tão diferente, como explica que filmes como os de Pedro Costa ou de Teresa Villaverde sejam ainda tão cheios da tristeza que habita os filmes do cinema português dos anos 80?
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Isso não acontece só no cinema. Acontece na literatura, na pintura. Ou seja, isso continua a espelhar qualquer coisa que existe, que continua a existir e que é, digamos, um traço de um pequeno país, ainda bastante periférico em relação à Europa, embora crescentemente inserido nela, e atravessado por profundas transições e por uma cultura contrastante, onde esse traço de amargura é muito visível.
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Quais são, neste momento, os cineastas portugueses de quem mais espera?
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Espero de muitos. Espero do Manoel de Oliveira, que com 90 anos continua em plena forma, e espero muito do Paulo Rocha, do João César Monteiro, do João Botelho, do Jorge Silva Melo, do Alberto Seixas Santos, do João Mário Grilo, do Pedro Costa, entre muitos outros, cujas obras são extremamente interessantes, polémicas, estimulantes, e representam hoje, mais do que isso, num panorama cinematográfico muito cinzento e crescentemente marcado pelas suas características de consumo, qualquer coisa de diferente. Representam uma aposta no cinema como arte, na autonomia de uma arte cinematográfica, e são filmes que continuam a ser um grande desafio estético e ético.
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Regressemos ao princípio. Como é que a Cinemateca vai viver os próximos anos?
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A Cinemateca passou por grandes transformações desde 1980. A primeira foi a de ter autonomia, ter uma sala, etc. Aumentou muito a sua colecção, temos cerca de 10 mil filmes, e, sobretudo, foi dotada com uma estrutura nova, o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, onde pela primeira vez pudemos conservar filmes. Ou seja, as infra-estruturas estão lançadas para que a cinemateca seja o que uma cinemateca é ou deve ser: um museu de cinema.
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[entrevistado por Luís Trindade, Vida Mundial nº 14, Março de 1999]