“O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa – de uma só pessoa que seja – atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.
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Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer – ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida –, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.
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«Os meus hábitos são os da solidão, que não os dos homens»; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie – não poderei talvez dizer da minha raça.”
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[Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 1998]
30.9.07
Café Portugal (2)
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Ainda sobre o Café Portugal, do qual falei aqui, consegui arranjar esta foto do seu interior, que era lindíssimo, como se pode ver:
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28.9.07
poema
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Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto…..tão perto…..tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]
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Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto…..tão perto…..tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]
Lisboa - Making Of
Encontrei no YouTube este vídeo muito bom, com mais de 9 minutos, em que é feita a apresentação do álbum Lisboa, com um pequeno excerto de cada música:
http://br.youtube.com/watch?v=LhkutRoo3U0
http://br.youtube.com/watch?v=LhkutRoo3U0
27.9.07
Lisboa
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Tenho andado a ouvir este disco, que saiu suponho que em Julho, mas só agora comprei.
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Com o nome Lisboa, o disco é uma espécie de tributo musical a esta cidade, estando associado às comemorações dos 25 anos do Frágil. É editado pela Lisboa Records, editora estreante, que pretende continuar a apostar em projectos na área da música portuguesa, o que é de louvar, numa altura em que se vive uma crise profunda na indústria discográfica portuguesa.
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Temos assim 12 temas (sendo 11 inéditos), com características bastante diversas, envolvendo nomes como Rodrigo Leão, Rui Reininho, Rogério Samora, Maria Ana Bobone, Ricardo Rocha, os Danças Ocultas, A Naifa, The Gift ou os BCN, entre outros.
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Para mim o ponto alto do disco é o último tema, em que ouvimos uma gravação de Mário Cesariny a ler o poema You Are Welcome to Elsinore, musicado pelos BCN.
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Estão ainda presentes mais dois poemas de Cesariny: Poema lido por Rogério Samora, com música de Rodrigo Leão e Passagem a Limpo com interpretação d’A Naifa.
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Há algumas músicas de que gosto menos (sobretudo a dos Gift) mas o nível geral é muito bom e recomendo vivamente.
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Com o nome Lisboa, o disco é uma espécie de tributo musical a esta cidade, estando associado às comemorações dos 25 anos do Frágil. É editado pela Lisboa Records, editora estreante, que pretende continuar a apostar em projectos na área da música portuguesa, o que é de louvar, numa altura em que se vive uma crise profunda na indústria discográfica portuguesa.
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Temos assim 12 temas (sendo 11 inéditos), com características bastante diversas, envolvendo nomes como Rodrigo Leão, Rui Reininho, Rogério Samora, Maria Ana Bobone, Ricardo Rocha, os Danças Ocultas, A Naifa, The Gift ou os BCN, entre outros.
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Para mim o ponto alto do disco é o último tema, em que ouvimos uma gravação de Mário Cesariny a ler o poema You Are Welcome to Elsinore, musicado pelos BCN.
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Estão ainda presentes mais dois poemas de Cesariny: Poema lido por Rogério Samora, com música de Rodrigo Leão e Passagem a Limpo com interpretação d’A Naifa.
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Há algumas músicas de que gosto menos (sobretudo a dos Gift) mas o nível geral é muito bom e recomendo vivamente.
26.9.07
you are welcome to elsinore
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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte…..violar-nos…..tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas…..portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
.
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida…..há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
.
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore
.
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
.
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]
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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte…..violar-nos…..tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas…..portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
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Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida…..há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
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Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore
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E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
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Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]
24.9.07
Café Portugal
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O Café Portugal foi um dos últimos cafés que surgiram no Rossio, tendo sido inaugurado em 1938, com a autoria do arquitecto Christino da Silva.
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Manteve-se durante muitos anos como um dos mais importantes cafés de Lisboa, tendo como características mais marcantes a sua grande dimensão e a belíssima galeria. Todo o café era lindíssimo, aliás, como se pode ver na foto da fachada aqui em cima.
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Tal como o Gelo e muitos outros, começou a entrar em decadência nos anos 70, acabando por ser transformado num salão de jogos. Nos anos 90 foi uma megastore da Valentim de Carvalho, mas acabou por fechar, dando lugar à vulgar sapataria que lá vemos agora. É um caso gritante de sub-aproveitamento de um espaço com excelentes características, coisa aliás frequente nesta zona da cidade.
O Café Portugal foi um dos últimos cafés que surgiram no Rossio, tendo sido inaugurado em 1938, com a autoria do arquitecto Christino da Silva.
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Manteve-se durante muitos anos como um dos mais importantes cafés de Lisboa, tendo como características mais marcantes a sua grande dimensão e a belíssima galeria. Todo o café era lindíssimo, aliás, como se pode ver na foto da fachada aqui em cima.
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Tal como o Gelo e muitos outros, começou a entrar em decadência nos anos 70, acabando por ser transformado num salão de jogos. Nos anos 90 foi uma megastore da Valentim de Carvalho, mas acabou por fechar, dando lugar à vulgar sapataria que lá vemos agora. É um caso gritante de sub-aproveitamento de um espaço com excelentes características, coisa aliás frequente nesta zona da cidade.
21.9.07
Luiz Pacheco: o Mito do Café Gelo
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O MITO DO CAFÉ GELO
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… Ou os saudosismos exaltados. No dia 1 de Maio de 1962 houve em Lisboa uma grande manifestação popular. A Baixa, principalmente o Rossio, foram cenário de muita pancadaria, com tiros, mortos, feridos, correrias, cacetada brava: carros de água e não só: azul de metileno, a porcaria duma tinta que sujava tudo, marcava os manifestantes. Polícia de choque, armadíssima e vigilante e aguerrida. No Café Gelo (onde me dizem haver hoje uma casa de hamburgers de nome cabalístico, ABRACADABRA), estava a malta habitual preparada para os acontecimentos. Como sofro de agorafobia, no momento exacerbada pela prudência, sentei-me resguardado a um cantinho (de nada me valeu); a meu lado o pai da Fernanda Alves e lembro também a Fernanda, o Ernesto Sampaio, o Virgílio Martinho, o João Rodrigues. Por um pequenino incidente que seria longo explicar, surgiu-nos a polícia de choque, levámos porrada. No dia seguinte, o Cerqueira, gerente do café, foi chamado à esquadra do Nacional e ficámos proibidos de frequentar o Gelo.
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Ora, passados trinta anos, fazem-me perguntas sobre o que era o Café Gelo, sobre aquela malta que se reunia ali, o que se passava, em suma. E sinto-me encavacado para responder, ao certo. Há que constatar: criou-se uma lenda. Exagerada, mitificada, boatada? é o costume, o natural das lendas. Escreveram-se teses sobre (da Aldina Costa, por exemplo). Em trabalhos universitários sobre o Surreal em Portugal é provável que o Gelo seja citado (por ex: o da Eduarda Feio e da Aurélia Cândida). Em tempos, eu próprio escrevi ou gravei uma coisata chamada «Central Gelo», relacionada com os panfletos, polémicas, intrigas desnorteantes, mais ou menos revolucionárias, como a divertida Operação Papagaio (disto sabe melhor que eu o Luís Filipe Costa: até metia assalto ao Rádio Clube Português, com armas de guerra!) Reconheço: a fama do Gelo, já na época, teria algum fundamento. E será, talvez isso, que perdura ainda.
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Na clientela do Café Gelo, nos anos 50-60, não teria homogeneidade etária, coexistiam tipos dos 8 aos 80, do José Carlos González, caco infantil, ao Raul Leal, do Orpheu, caquético total. Escassa identidade ideológica, dos fascistas à Goulart Nogueira aos anarcas como o Forte, o Henrique Tavares, o Saldanha da Gama. Prostitutas, bêbados e maricas. Maluquinhos como o António Gancho. Nenhuma programação estética. Dali não saiu Revista, doutrina, escola que se aproveitasse. Então?! Havia, isso sim, um espaço de convívio em liberdade plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo arrivismo, a vida prática, as etiquetas sociais que noutros meios, da mais categorizada Oh Posição oficial se evidenciavam.
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E houve suicídios, amores desatinados, gente perdida para sempre, muitos e muitos poemas, livrinhos de estreia. Tudo e um tanto desorganizado e traquinas. E gargalhado, inócuo; haveria ali, no ambiente, uma poesia comunicante, o Herberto que me perdoe roubar-lhe o ápodo. E seria o que nos atraía, então. E terá sido a sua referência melhor, a substância da lenda.
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[Luiz Pacheco, in Figuras, Figurantes e Figurões, O Independente, 2004]
20.9.07
Luiz Pacheco: o 1º de Maio de 1962 no Café Gelo
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"Lembro-me do dia 1 de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio... aquilo foi a sério... foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa... depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: “o que é que a gente veio cá fazer?” Respondi-lhe: “então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…” E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: “ninguém se levanta daqui, ninguém sai!” O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, “ei você…” E a malta disse: “é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…” Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos “uhuhuhuhuhuh”. Quando a malta faz o “uhuhuhuhuhu” os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto... nós não podíamos sair... Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: “quem são esses gajos?”. “Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…” “Não quero lá esses gajos”. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: “vocês não podem estar aqui”. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito..."
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[Luiz Pacheco, em entrevista a João Pedro George, blog Esplanar, Maio 2005]
"Lembro-me do dia 1 de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio... aquilo foi a sério... foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa... depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: “o que é que a gente veio cá fazer?” Respondi-lhe: “então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…” E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: “ninguém se levanta daqui, ninguém sai!” O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, “ei você…” E a malta disse: “é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…” Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos “uhuhuhuhuhuh”. Quando a malta faz o “uhuhuhuhuhu” os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto... nós não podíamos sair... Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: “quem são esses gajos?”. “Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…” “Não quero lá esses gajos”. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: “vocês não podem estar aqui”. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito..."
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[Luiz Pacheco, em entrevista a João Pedro George, blog Esplanar, Maio 2005]
19.9.07
Café Gelo (2)
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O Café Gelo é um dos tradicionais cafés do Rossio. Inaugurado em meados do século XIX, começou por chamar-se Botequim do Gonzaga, passando depois para Café Freitas e finalmente Café do Gelo. Só nos anos 50 perdeu o “do” ficando simplesmente Café Gelo.
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O Gelo teve sempre uma grande tradição revolucionária. Por exemplo terá sido daqui que saíram, em 1908, Alfredo Costa e Manoel Buiça para o Terreiro do Paço para disparar sobre a família real.
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Nos anos 50 sofreu uma profunda remodelação, a maior até então, tendo ficado no exterior com umas portas envidraçadas. Foi por esta altura que começou aqui a reunir-se o chamado “grupo do Gelo”, muitos deles vindos do Café Herminius, na Avenida Almirante Reis, embora tenham continuado a frequentar, em paralelo, o Royal, no Cais do Sodré.
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Do mítico “grupo do Gelo”, muito ligado ao surrealismo, faziam parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho ou Herberto Helder, entre outros.
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Esta tertúlia durou até ao 1º de Maio de 1962. Neste dia verificaram-se violentos confrontos no Rossio entre a polícia de choque e os manifestantes. Alguns clientes do Gelo terão arremessado açucareiros de metal contra a polícia, tendo a PIDE proibido o proprietário do café de receber este grupo, sob pena de ser obrigado a fechar o café. O “grupo do Gelo” acabou assim por se desfazer.
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A partir dos anos 70, o Gelo começou a entrar em acelerada decadência, acabando até por perder o nome nos anos 90, transformando-se no fast-food Abracadabra.
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Recuperou agora o seu nome tradicional.
O Café Gelo é um dos tradicionais cafés do Rossio. Inaugurado em meados do século XIX, começou por chamar-se Botequim do Gonzaga, passando depois para Café Freitas e finalmente Café do Gelo. Só nos anos 50 perdeu o “do” ficando simplesmente Café Gelo.
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O Gelo teve sempre uma grande tradição revolucionária. Por exemplo terá sido daqui que saíram, em 1908, Alfredo Costa e Manoel Buiça para o Terreiro do Paço para disparar sobre a família real.
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Nos anos 50 sofreu uma profunda remodelação, a maior até então, tendo ficado no exterior com umas portas envidraçadas. Foi por esta altura que começou aqui a reunir-se o chamado “grupo do Gelo”, muitos deles vindos do Café Herminius, na Avenida Almirante Reis, embora tenham continuado a frequentar, em paralelo, o Royal, no Cais do Sodré.
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Do mítico “grupo do Gelo”, muito ligado ao surrealismo, faziam parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho ou Herberto Helder, entre outros.
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Esta tertúlia durou até ao 1º de Maio de 1962. Neste dia verificaram-se violentos confrontos no Rossio entre a polícia de choque e os manifestantes. Alguns clientes do Gelo terão arremessado açucareiros de metal contra a polícia, tendo a PIDE proibido o proprietário do café de receber este grupo, sob pena de ser obrigado a fechar o café. O “grupo do Gelo” acabou assim por se desfazer.
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A partir dos anos 70, o Gelo começou a entrar em acelerada decadência, acabando até por perder o nome nos anos 90, transformando-se no fast-food Abracadabra.
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Recuperou agora o seu nome tradicional.
18.9.07
Café Gelo
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O Café Gelo regressou ao Rossio. Só o nome, claro, o café não tem qualquer semelhança com o que ali existiu no passado. É um vulgaríssimo café com ar moderninho, pouco melhor que o fast-food manhoso que lá estava ultimamente...
O Café Gelo regressou ao Rossio. Só o nome, claro, o café não tem qualquer semelhança com o que ali existiu no passado. É um vulgaríssimo café com ar moderninho, pouco melhor que o fast-food manhoso que lá estava ultimamente...
17.9.07
Elevador da Glória (2)
O Elevador da Glória foi o segundo elevador (ou ascensor) do género a aparecer em Lisboa (o primeiro foi o do Lavra), tendo sido inaugurado em 1865. É da autoria de Raul Mesnier du Ponsard, engenheiro de origem francesa, que também tem a autoria de outros ascensores em Lisboa, no Bom Jesus, em Braga, na Nazaré ou o funicular dos Guindais, no Porto. É também o autor do Elevador de Santa Justa.
Vale a pena ler a história deste elevador no site da Carris e num artigo do Público de hoje (ver no “local” ou aqui).
Vale a pena ler a história deste elevador no site da Carris e num artigo do Público de hoje (ver no “local” ou aqui).
12.9.07
On the Road: 50 Anos
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Escrito numa prosa frenética, descreve as deambulações pelas estradas norte-americanas de Kerouac, maioritariamente à boleia, de mochila às costas e sem dinheiro, muitas vezes com a companhia do seu amigo Neal Cassady. Também Burroughs ou Ginsberg, que tinham conhecido Kerouac nos meios intelectuais e boémios nova-iorquinos, aparecem no livro. É um hino a um estilo de vida errante e em intensidade máxima, com muito jazz, álcool, drogas e sexo.
Esclareça-se que tudo isto se passa em finais dos anos 40, embora a primeira publicação do livro só tenha ocorrido em 1957.
On the Road foi escrito em apenas 3 semanas, num rolo de papel de 36 metros, sem qualquer pontuação e com um parágrafo único. Após ter sido rejeitado por várias editoras, acabou por despertar o interesse de uma, mas o livro teve de ser reescrito e pontuado. Também os nomes tiveram de ser modificados. Assim, Jack Kerouac ficou Sal Paradise, Neal Cassady ficou Dean Moriaty, Allen Ginsberg ficou Carlo Marx, William Burroughs ficou Old Bull Lee e Carolyn Cassady ficou Camille.
O livro tornou-se um best-seller e Kerouac ficou famoso, mas não lidou bem com a situação. Embora tenha sido uma referência fundamental para os movimentos de contracultura dos anos 60, Kerouac nunca os acompanhou, tendo até apoiado a Guerra do Vietname. Ao contrário de Ginsberg e outros, nunca se deu bem com a geração hippie ou com o flower-power. Acabou por morrer em 1969, devido ao excesso de álcool, quando se encontrava já afastado do meio beatnik. .
Além de On the Road escreveu outras obras importantes, como The Dharma Burns (1958), The Subterraneans (1958) ou o desencantado Big Sur (1962).
Em Portugal, On the Road foi publicado pela primeira vez em 1960 pela Ulisseia.
Nos anos mais recentes é a Relógio d’ Água que tem publicado Kerouac, tendo no seu catálogo Pela Estrada Fora, Os Vagabundos do Dharma, Os Subterrâneos e Big Sur.
Passaram, no dia 5 de Setembro, 50 anos sobre a publicação de On the Road, de Jack Kerouac (Pela Estrada Fora, em português), a bíblia da beat generation e um dos livros mais importantes do Século XX.
Escrito numa prosa frenética, descreve as deambulações pelas estradas norte-americanas de Kerouac, maioritariamente à boleia, de mochila às costas e sem dinheiro, muitas vezes com a companhia do seu amigo Neal Cassady. Também Burroughs ou Ginsberg, que tinham conhecido Kerouac nos meios intelectuais e boémios nova-iorquinos, aparecem no livro. É um hino a um estilo de vida errante e em intensidade máxima, com muito jazz, álcool, drogas e sexo.
Esclareça-se que tudo isto se passa em finais dos anos 40, embora a primeira publicação do livro só tenha ocorrido em 1957.
On the Road foi escrito em apenas 3 semanas, num rolo de papel de 36 metros, sem qualquer pontuação e com um parágrafo único. Após ter sido rejeitado por várias editoras, acabou por despertar o interesse de uma, mas o livro teve de ser reescrito e pontuado. Também os nomes tiveram de ser modificados. Assim, Jack Kerouac ficou Sal Paradise, Neal Cassady ficou Dean Moriaty, Allen Ginsberg ficou Carlo Marx, William Burroughs ficou Old Bull Lee e Carolyn Cassady ficou Camille.
O livro tornou-se um best-seller e Kerouac ficou famoso, mas não lidou bem com a situação. Embora tenha sido uma referência fundamental para os movimentos de contracultura dos anos 60, Kerouac nunca os acompanhou, tendo até apoiado a Guerra do Vietname. Ao contrário de Ginsberg e outros, nunca se deu bem com a geração hippie ou com o flower-power. Acabou por morrer em 1969, devido ao excesso de álcool, quando se encontrava já afastado do meio beatnik. .
Além de On the Road escreveu outras obras importantes, como The Dharma Burns (1958), The Subterraneans (1958) ou o desencantado Big Sur (1962).
Em Portugal, On the Road foi publicado pela primeira vez em 1960 pela Ulisseia.
Nos anos mais recentes é a Relógio d’ Água que tem publicado Kerouac, tendo no seu catálogo Pela Estrada Fora, Os Vagabundos do Dharma, Os Subterrâneos e Big Sur.
6.9.07
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[Ernst Ludwig Kirchner, Marcella, 1909]
QUATRO
Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.
Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.
Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamava-mos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.
O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.
Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.
Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.
Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.
Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamava-mos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.
O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.
Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.
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[José Miguel Silva, in Vista Para Um Páteo seguido de Desordem, Relógio D'Água, 2003]
5.9.07
4.9.07
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CASA BRANCA
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Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
… … … … … … … … … … … … …
.
A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.
.
Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.
.
[Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia, 1944]
.
Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
… … … … … … … … … … … … …
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A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.
.
Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.
.
[Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia, 1944]
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