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Gostei de Boa Noite, Senhor Soares, de Mário Cláudio, uma novela pessoana em torno de Bernardo Soares. Nos anos 80 António da Silva Felício recorda o tempo em que trabalhou no escritório do “patrão Vasques”, na Rua dos Douradores, tendo como colega, entre outros, o enigmático senhor Soares.
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António evoca assim, numa prosa muitas vezes castiça e típica da época, uma melancólica Lisboa dos anos 30, ao mesmo tempo que revela o seu fascínio por essa misteriosa figura “de olhar triste, mas sempre muito atento” que os colegas achavam “um bocadinho esquisito”:
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“Quantas e quantas vezes, ao reparar naquelas faces deslavadas do senhor Soares, e sobretudo à segunda-feira, quando ele parecia ter transitado directamente da cama para o escritório, perguntava a mim próprio, «Mas este gajo não apanha ar?, vive assim fechado em si mesmo, nunca se terá posto em tronco nu ao sol em Carcavelos?» Acontecia-me isto no Verão, e com as janelas escancaradas para a Rua dos Douradores, cheia daquelas falas preguiçosas que só se ouvem no calor, e que se misturam ao chilreio dos pardais, e ao barulho da água da esfrega que uma santinha despeja à soleira da porta. E ali se sentava o senhor Soares, de olhar triste, mas sempre muito atento, e o mais que se consentia era desabotoar o colarinho, o que fazia com que o laço lhe caísse para a frente como uma coisa murcha. Logo depois eu inquiria dos meus botões, «Mas quem será ele de facto?, nunca se terá estirado debaixo de uma parreira, ou de uma árvore? nunca terá comido até tocar com o dedo, nem bebido até tombar para o lado, nem rido à gargalhada até sufocar?» Eu tornava a observar o senhor Soares, e de repente tinha a impressão de que ele cabeceava, não de sono, mas de pensar, ou talvez de sentir, o que eu não sentia. O homem erguia-se num estremeção, e vinha-me à ideia que se achava ele já morto no seu fato escuro, e com os cotovelos do casaco empoeirados por se ter apoiado, quando o escritório ficava deserto à hora do almoço, na sacada da varanda.”
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António evoca assim, numa prosa muitas vezes castiça e típica da época, uma melancólica Lisboa dos anos 30, ao mesmo tempo que revela o seu fascínio por essa misteriosa figura “de olhar triste, mas sempre muito atento” que os colegas achavam “um bocadinho esquisito”:
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“Quantas e quantas vezes, ao reparar naquelas faces deslavadas do senhor Soares, e sobretudo à segunda-feira, quando ele parecia ter transitado directamente da cama para o escritório, perguntava a mim próprio, «Mas este gajo não apanha ar?, vive assim fechado em si mesmo, nunca se terá posto em tronco nu ao sol em Carcavelos?» Acontecia-me isto no Verão, e com as janelas escancaradas para a Rua dos Douradores, cheia daquelas falas preguiçosas que só se ouvem no calor, e que se misturam ao chilreio dos pardais, e ao barulho da água da esfrega que uma santinha despeja à soleira da porta. E ali se sentava o senhor Soares, de olhar triste, mas sempre muito atento, e o mais que se consentia era desabotoar o colarinho, o que fazia com que o laço lhe caísse para a frente como uma coisa murcha. Logo depois eu inquiria dos meus botões, «Mas quem será ele de facto?, nunca se terá estirado debaixo de uma parreira, ou de uma árvore? nunca terá comido até tocar com o dedo, nem bebido até tombar para o lado, nem rido à gargalhada até sufocar?» Eu tornava a observar o senhor Soares, e de repente tinha a impressão de que ele cabeceava, não de sono, mas de pensar, ou talvez de sentir, o que eu não sentia. O homem erguia-se num estremeção, e vinha-me à ideia que se achava ele já morto no seu fato escuro, e com os cotovelos do casaco empoeirados por se ter apoiado, quando o escritório ficava deserto à hora do almoço, na sacada da varanda.”