31.12.10

Alguns livros de 2010

  • Corpo Visível (1ª edição fac-similada), Mário Cesariny, Assírio & Alvim
  • A Última Porta, Manuel de Freitas, Assírio & Alvim
  • A Nova Poesia Portuguesa, Manuel de Freitas, Poesia Incompleta
  • Santo Súbito, Miguel Manso, ed. do autor
  • João César Monteiro (as Folhas da Cinemateca), Cinemateca Portuguesa
  • Que Lareiras na Floresta, Alberto Pimenta, 7 Nós
  • Crónicas: Imagens Proféticas e Outras (1º e 2º volumes), João Bénard da Costa, Assírio & Alvim
  • reedições de As Magias e O Bebedor Nocturno, Herberto Helder, Assírio & Alvim
  • O Tempo dos Assassinos, contos escolhidos e traduzidos por Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim
  • Correios, Charles Bukowski, Antígona
  • Pan, Knut Hamsun, Cavalo de Ferro
  • O Vermelho e o Negro, Stendhal, Relógio D'Água
  • clássicos russos na Relógio D'Água (Tolstói, Turguénev, Dostoievski)
  • Do Inconviniente de Ter Nascido, E. M. Cioran, Letra Livre
  • Uma Semana de Bondade, Max Ernst, & etc

29.12.10

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Negra, a maré ainda não bateu
à nossa porta. Ácidas, as chuvas
ainda não comeram o pasto
do nosso rebanho. Industrial, por acaso
a medicina ainda não nos caiu mal.
Espelhos: continuam a não devolver
a nossa imagem. A raiva ainda não,
não possuiu os nossos filhos. Hoje
é o Dia Internacional do Ansiolítico.
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[Paulo da Costa Domingos, in Homem Quase Novo, frenesi, 2010]

23.12.10

O Mono do Rato

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A Câmara de Lisboa acabou por licenciar este verdadeiro atentado no Largo do Rato, sem exigir qualquer alteração ao projecto proposto inicialmente (mais informações aqui e aqui).
Só mais um esforço patos bravos, mono a mono, em breve tereis conquistado Lisboa inteira! No Hospital Miguel Bombarda será o próximo.

22.12.10

"realmente há uma coisa que sempre me admirará que são as pessoas que não têm um pequeno toque de poesia... São pessoas? São uma pedra. Com todo o respeito que merecem as pedras... Mas realmente acho muito esquisito haver pessoas que não tenham conhecimento da poesia; como é que se pode viver sem poesia?"
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[Cruzeiro Seixas, in Coelacanto nº 1, Dezembro de 2010]

20.12.10

À Flor do Mar

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À Flor do Mar (1986), de João César Monteiro, hoje, às 22 h, na Cinemateca.

19.12.10

Coelacanto

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A Coelacanto é uma nova revista literária, dirigida por Nádia Silvestre. O primeiro número faz uma mais do que merecida homenagem a António José Forte, poeta fundamental, inexplicavelmente muito esquecido. A homenagem inclui textos e poemas de Forte, desenhos de Aldina e textos e poemas (nem todos inéditos) de Herberto Helder, Luiz Pacheco, Vítor Silva Tavares, Paulo da Costa Domingos, António Barahona e Manuel de Freitas, entre outros.
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Além desta homenagem, a revista tem uma longa entrevista com Cruzeiro Seixas, poemas de Miguel Martins, Manuel de Freitas e Diogo Vaz Pinto, entre outros, um cadáver esquisito de Miguel Manso e Nuno Moura e um texto de Eduardo Sousa (da Letra Livre), entre muitas outras coisas.
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Custa 10 euros.
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Estão de parabéns os autores do projecto.

18.12.10

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para a Poesia Incompleta
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De entre as várias coisas que já não passam
nem acontecem na Praça das Flores, em Lisboa,
apetecia-me destacar o autocarro número 100,
a presença rígida e funâmbula de João César Monteiro,
o balcão sombrio e generoso da taberna de Dona Benilde.
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Em contrapartida, vejo cada vez mais
gente sentada a falar com um computador
no Pão de Canela, o quiosque reabriu
e vende limonadas, há uma livraria de poesia,
uma loja de chocolates, um restaurante vegetariano,
um Multibanco - tudo isto a menos de duzentos metros.
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Ontem, da porta fechada da taberna, Benilde
chamou-nos, numa loura saudação
que nos fez sentir ligeiramente culpados
e burgueses. Embora o extremínio, como é óbvio,
mantenha ainda e sempre a sua perfeita invisibilidade.
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Hoje, com a hercúlea companhia do Miguel
Martins, bebemos todo o vinho branco
que sobrava nos porões do Anarka Bar.
Não nos incomodava sequer o cheiro a tristeza,
a falta de tabaco, o ranço hospitalar do parlamento.
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Ali ao lado, discutia-se poesia, fazia-se a ética numa salada
sem tempero. era tudo o que não queríamos discutir.
Mas aguardávamos João Vuvu,nesta praça sem saída.
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[Manuel de Freitas, in Coelacanto nº 1, Dezembro de 2010]

15.12.10

Coelacanto

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(clicar para aumentar)
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Lançamento do primeiro número da revista Coelacanto, hoje ao fim da tarde, na livraria Sá da Costa.

14.12.10

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MEMÓRIA DO CAFÉ GELO
à memória de Mário Cesariny de Vasconcelos
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No Café Gelo, um grupo de poetas
demanda o elixir de vida curta,
de longa morte lenta e absoluta
.....e sílabas secretas.
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Mesas de mármore, cadeiras sépia;
eis um café à beira do abismo:
conversas incendiadas, sismo a sismo,
.....no desabar da época.
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Revolta, ódio, fome, febre atroz:
no riso pode haver isto e tristeza
e grande amor do sonho, e da beleza
.....a que o grupo dá voz.
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Não morreu este grupo: é perene
seu eco que deixou alto-relevo
numa parede-mestra, aonde subo
.....a pulso e tão solene!
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De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
.....em ilhas de desejo.
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Vejo o corpo de glória de Lisboa
reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
.....dedicado a Pessoa.
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Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D'Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
.....esquerda e fala pouco.
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Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Virgílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d'Orpheu, Henoch irado
.....com lucidez de flama.
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Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
.....numa fresta de céu.
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Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
o Mário Cesariny põe em cena
.....a sua luz no espaço.
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Passaram mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
.....em versos soberanos.
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Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
.....e mais de mil cigarros.
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Nas nuvens que se formam ao redor,
repousam borboletas d'asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
.....e cada vez maior.
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Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
.....e olha tão depressa
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tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
.....cintil azul do mar.
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Na sombra, Cesariny d'alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
.....até matar a morte.
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[António Barahona, in Relâmpago nº 26, Abril de 2010]

13.12.10

Vítor Silva Tavares no DN (04/09/2010)

Através do blog da & etc cheguei a esta entrevista/retrato de Vítor Silva Tavares, feita por Fernando Madaíl para o Diário de Notícias de 04/09/2010:
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Vítor Silva Tavares
Amante de livros radicalmente livre... & etc

por FERNANDO MADAÍL
4 Setembro 2010
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O vulto da editora que lança títulos fundamentais em pequenas tiragens privou com as figuras fundamentais do seu tempo, de Almada a Cardoso Pires.
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Relógio da sopa? Oh! Lá está ele com o surrealismo." O relógio de cavalinho da sala de Vítor Silva Tavares, na Rua das Madres (mora na casa da Madragoa onde nasceu, a 17 de Julho de 1937), quando era empenhado, nos seus tempos de miúdo de pé descalço e língua de trapos ("se quiser, língua de Gil Vicente", ironiza), garantia à família caldo melhorado com chouriço de sangue ou naco de toucinho.
A alma da editora & etc - cujo catálogo se pode apreciar por algumas capas reproduzidas nestas páginas - , orgulha-se da miséria em que cresceu. O que ajuda a perceber a forma como assume uma vida "radicalmente independente", de quem foi retorquindo aos que queriam ser seus patrões que ninguém o punha no "olho da rua", pois nunca de lá tinha saído. Mesmo sabendo "a moeda que se paga por um suplemento de liberdade, que - essa sim - é impagável". O criador da chancela livreira marginal é filho de um maquinista da marinha mercante, que terá privado com o líder comunista Bento Gonçalves no Arsenal e tinha uma biblioteca que ia de Alves Redol a Paço d'Arcos - todos os títulos devorados por Vítor, leitor compulsivo desde que começou a juntar sílabas, não lhe importando se a obra era assinada por Zola, Salgari ou Spillane -, e de uma mulher que tanto trabalhava nas descargas de carvão e peixe como na fábrica das anchovas e, na sua imaginação cinéfila, era uma Anna Magnani.O miúdo que a avó, remendeira de velas de barcos e cantora de fados em tabernas, levava à sopa dos pobres do Sidónio, chegou a ver filmes atrás do ecrã - "o cavalo de John Wayne, em vez de cavalgar da esquerda para a direita, andava ao contrário". Mais tarde, trocaria os piolhos pelos cineclubes, os musicais da MGM pelo neo-realismo italiano - e lembra que este cinema permitiu a Joaquim Namorado dar um nome ao realismo socialista português.
Filho ilegítimo, pela legislação da época, foi rejeitado na escola oficial e frequentou aulas particulares em casa de duas velhotas, que ensinavam pela pedagogia da I República e liam passagens de poemas de Junqueiro e João de Deus que o futuro editor de nomes como Pedro Oom, Cesariny ou Herberto Helder, o amigo de Manuel da Fonseca, de João César Monteiro, de outros mais, ainda sabe de cor. Aluno de quadro de honra, mas revoltado no liceu da elite, num exame do 5º ano (actual 9º) atirou o hemisfério de Magdeburgo à cabeça do professor e foi expulso
Coleccionou ofícios, de empregado de escritório numa firma importadora de bisturis cirúrgicos a pintor de Cristos a óleo que um marchand vendia para conventos. Fez cenografia e adereços no teatrinho de bolso das Janelas Verdes - e Almada ficou encantado com os figurinos dos anjos que Vítor Silva Tavares concebeu para a peça Deseja-se Mulher.

Em África, foi examinador de cartas de condução em Angola (embora sem nunca ter tido o documento que o habilitava a conduzir), jornalista de O Intransigente e director de informação do Rádio Clube de Benguela. Ali rodou, com Juca Branco, Uma História do Mar, que, se ainda existisse cópia, talvez fosse o primeiro filme de ficção angolano. Depois, escreveu crónicas de cinema na revista Flama, contos no Diário Popular, crónicas no República, textos sobre as mulheres no Jazz na Crónica Feminina, coordenou o suplemento literário do Diário de Lisboa.
Aos 24 anos, era director literário da Ulisseia e, nos dois ou três anos em que esteve na editora, publicou obras como Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon (que "era a Bíblia dos guerrilheiros africanos"), ou Viagem ao Fim da Noite, de Céline ("o que me valeu ser considerado um reaça do pior"). Além dos censores, tinha a visita, "mês sim, mês sim", de brigadas da PIDE, pois lançava títulos como Praça da Canção (Manuel Alegre) ou Feira Cabisbaixa (Alexandre O'Neill). Ao publicar Crítica de Circunstância (Os Doutores, a Salvação e o Menino Jesus), de Luiz Pacheco, um polícia político perguntou a Vítor Silva Tavares se não lhe parecia que farsista, como era designado o tirano Herodes, era parecido com fascista.
Em 1967, quando o Jornal do Fundão foi suspenso por seis meses, preparava-se um magazine de letras, artes e espectáculos para se publicar naquele semanário oposicionista, mas com a sageza de evitar que fosse logo proibido. E no primeiro dos 26 números desse suplemento & etc - que haveria de ser revista autónoma de 1973 a 1974, tornando-se, depois, apenas editora - havia textos sobre o filme Pedro, o Louco, o fadista Alfredo Marceneiro e o novo bar Snob.

O nome foi inventado por José Cardoso Pires, que nunca esqueceu o concelho de Aquilino, após lhe entregar um exemplar do livro de estreia, Os Caminheiros e Outros Contos : "Sabe o que é preciso para se ser escritor? Orelhinha!" E foi assim que, ao correr da conversa sobre o magazine, notando que Vítor Silva Tavares repetia a expressão & etc (talvez reminiscência do seu livro angolano Hot e Etc), Cardoso Pires soltou uma espécie de eureka.
E como está a chancela de culto, que só faz pequenas tiragens e (excepto O Bispo de Beja, apreendido pela PJ) nunca reedita qualquer título? "Está há 36 anos na falência", diz o amante de livros, que não tem automóvel, computador ou telemóvel.

9.12.10

& etc na blogosfera

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A & etc está de parabéns pela sua surpreendente chegada à blogosfera!
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Eis o texto de apresentação:
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NÓS, & ETC
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Janeiro, 1973: sai o 1.º n.º da folheca cultural q.b. &etc. 25 reincidências depois, puf!, dá-lhe o badagaio. Entre outras graças, o sistema de distribuição & comercialização conseguiu apresentar um número de devoluções superior ao da própria tiragem.
(A tempo: pelo andar da carruagem, ainda nos volta a acontecer o mesmo...)
Dezembro, 73: sai o 1.º livro &etc, de seu título Coisas. Todo um programa, aqui para nós fielmente mantido até ao momento:

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– originalidade gráfica (o tal formato de 15,5 x 17,5 cm. com um quadrado lá dentro forçando ao cânone);
– tiragens magrinhas;
– preços a condizer;
– materiais pobres-mas-honrados;
– recusa total de subsídios estatais ou outros;
– política editorial tresmalhada mas com sentidos a piscar-o-olho;
– nada de reedições;
– nada de retribuições tipo copigaitas;
– nada de subserviências face às “imposições” (ditaduras) de indústria e de “mercado”.

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Falência, pois, assegurada desde o ovo, mas orgulhosamente sustentada até hoje graças a muita raiva à mistura com um romantismo (também ético) sabidamente anacrónico.
Prestes a fazer 38 aninhos de misérias materiais e luxos daqueles de só fazermos o que nos dá no gôto, somamos para aí uns 340 títulos publicados, coisa pouca, menos de 9 títulos-média por ano.
Grande parte (metade?) desses títulos encontra-se esgotada – e é muito apreciada por coleccionadores e alfarrabistas.
A coisa a continuar assim, ainda havemos de publicar apenas livros esgotados logo à saída dos prelos: êxito garantido!
Mas, enquanto não, cá nos vamos entretendo a ler as listas dos livros alegadamente “devolvidos” pelas livrarias, mesmo aqueles que sequer chegaram a cheirar-lhes as prateleiras.
Por estas e por outras, estamos a inaugurar este contacto virtual com virtuais interessados.

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Senhoras & senhores, Meninas & Meninos:
se desejardes (agarrados pelo rabo) adquirir algum livrinho &etc, porventura não encontrado nas livrarias do costume, favor encaminhar tão prestimoso desejo para as seguintes livrarias, estas nossas dilectas amigas:

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Letra Livre (email)
Artes e Letras (email)
Poesia Incompleta (email)
UTOPIA (Porto) (email)
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A & etc disponibiliza também o seu catálogo completo em pdf.

6.12.10

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PERGUNTA OCIOSA
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Os gregos ensinaram «paciência»
e «modera o apetite», os cristãos
acrescentaram «compadece-te e perdoa».
Sugestões orientadas para os dias
rigorosos da pobreza ou da velhice,
qunado resta carrilar no conformismo
a empenada carruagem do possível.
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Numa época, porém, em que os velhos
nada contam e ninguém se penaliza
por viver a curto prazo, na corrida
milionária ao armamento do desejo
(pois o pleito do consolo não se trava
já na alma mas na quina dos sentidos),
a que podemos nós chamar «sabedoria»?
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[José Miguel Silva, in Erros Individuais, Relógio D' Água, 2010]

3.12.10

“O que nas pessoas estranhas, desviadas por passo próprio ou enxotadas pelos outros, o fascinava era a absoluta liberdade individual com que faziam as suas escolhas. Num louco ou num pedinte que vagueava pelas ruas a pedir pão e sopa e que, de noite, tal qual os outros humanos, só queria dormir, Buchmann via quem poderia escolher em liberdade pura, e sem consequências, a sua moral individual. Moral que nem sequer tem um par, um elemento que a acompanhe.
Quem iria contestar a «vida imoral» de um pedinte ou de um louco? Aqueles homens tinham já em si, pela sua diferença, uma carga de imoralidade universal e profunda, que os tornava imunes às pequenas imoralidades praticadas.
Um louco, tal como um pedinte, não era imoral. Eram indivíduos sem cópia, semelhantes a um rei; alguém que não tem par, que não tem aquele que está ao seu lado. E por isso não há para esses homens escorraçados, como não há para o homem mais poderoso, qualquer critério de comparação.
Buchmann olhava com admiração para aqueles homens que traziam no bolso um sistema jurídico único, com o seu nome no fim.”
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[Gonçalo M. Tavares, in Aprender a Rezar na Era da Técnica, Caminho, 2007]

2.12.10

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[Egon Schiele, Männlicher Akt, gelb, 1910]

29.11.10

S de solidão
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Solidão é uma palavra obscena. É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo. Medo – um homem pode dar por si a cometer crimes sem grandeza. Assassinar, por exemplo. Princípios superlativamente adolescentes. Prefiro a decomposição da pele, uma taberna entre cabeços, o petróleo de candeeiros que projectem sombras imóveis, recantos, pequenos estrumes. E já agora, se me dão licença, um frio de certo modo inculto a bater no vidro da janela, nos ossos, talvez nos ossos, quando se acaba o dinheiro. Mas é humano, bárbaro e humano. Uma espécie de sinfonia entregue ao poder de cada qual, arrecadações da alma, mansas. E dardejante o círculo azul de um copo de aguardente, aguardente, imagine-se, a saltar dentro de si, a subir, a subir, e um homem dizer, imortal: senta-te, copo. Bebe comigo. E ele senta-se e bebe. É remoto, quase no outro lado das trevas. Mas magnífico, oh, tão magnífico. E ainda há quem me fale de escritores, romances, e até de revoluções. Balelas. Quero uma nora que pare o mundo rente ao fogo do inferno. E a água detida, doente, de preferência afogada pela mão de Deus a arder. Nada de riscos. Eis do que falo. Precário, inviolado, entregue ao soalho.
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[José Amaro Dionísio, in A Perspectiva da Morte: 20 (-2) Poetas Portugueses do Século XX (selecção e prefácio de Manuel de Freitas), Assírio & Alvim, 2009]

17.11.10

Chego cedo ao café
à hora a que estão a entrar
as batatas e as cebolas
os legumes dão-me paz
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[Adília Lopes, in Apanhar Ar, Assírio & Alvim, 2010]

16.11.10

Apanhar Ar

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(clicar para aumentar)
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Apanhar Ar, de Adília Lopes, é hoje apresentado na livraria da Assírio & Alvim.

12.11.10

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A PREGUIÇA
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A alma adora nadar. Para nadar, há que deitar-se de barriga. A alma despega-se e parte. Parte a nadar. (Se a vossa alma parte quando estais de pé, ou sentados, ou de joelhos, ou apoiados nos cotovelos, para cada posição corporal diferente a alma partira com uma locomoção e uma forma diferentes, segundo concluirei mais tarde).
Fala-se muito em voar. Não é isso. O que ela faz é nadar. E nada como as serpentes e as enguias, nunca de outro modo. Há imensa gente que tem assim uma alma que adora nadar. Chamam-lhes vulgarmente preguiçosos. Quando a alma deixa o corpo pelo ventre para nadar, produz-se uma tal libertação de sei lá o quê, é um abandono, um gozo, uma descontracção tão íntima.
A alma parte a nadar no vão das escadas, ou na rua, consoante a timidez ou a audácia do homem, porque ela conserva sempre um fio que a une a ele, e se esse fio se quebrasse (às vezes é muito fino, mas só uma força terrível o poderia romper) seria terrível para eles (para ela e para ele).
Então, quando ela está entretida a nadar ao longe, escoam-se, por esse simples fio que liga o homem à alma, volumes de uma espécie de matéria espiritual, como lama, como mercúrio, ou como um gás – gozo interminável.
É por isso que o preguiçoso é incorrigível. Nunca mudará. É por isso que a preguiça é a mãe de todos os vícios. Pois acaso haverá coisa mais egoísta do que a preguiça?
Tem fundamentos que o orgulho não tem.
Mas as pessoas irritam-se com os preguiçosos.
Quando os vêm deitados, batem-lhes, mandam-lhes água fria à cabeça, eles têm de recolher a alma imediatamente. Olham-vos então com esse olhar de ódio, bem conhecido, que se vê sobretudo nas crianças.
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[Henri Michaux, in Antologia, Relógio D’Água, 1999]

8.11.10

Clássicos russos na Relógio D' Água

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"A Relógio D’Água prossegue, nos próximos meses, a publicação de clássicos russos, como Turguénev, Tolstói, Dostoievski e Tchékhov. Trata-se de autores surgidos no período de criação literária mais fecundo de sempre, ou seja, na Rússia que vai da libertação dos servos à revolução de 1905.
De Turguénev, e depois da novela Águas da Primavera sairá, ainda este ano, o último romance que escreveu, Solo Virgem, em tradução do russo de Manuel de Seabra.
Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoievski e Guerra e Paz de Lev Tolstói estão a ser traduzidos por António Pescada, tendo edição prevista para o primeiro semestre de 2011.
De Tchékhov será publicado A Ilha: Uma Viagem a Sakhalin. É a narrativa de viagens que o então jovem médico Tchékhov fez aos condenados em Sakhalin, um local remoto onde apenas se aguardava a morte.
Do até agora inédito em Portugal Saltykov-Shchedrin acaba de sair A Família Golovliov, com um prefácio de James Wood, que considera este romance «cada vez mais moderno com a passagem do tempo».
A lista de clássicos russos é completada com Petersburgo de Andrei Béli em tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. O romance foi considerado por Vladimir Nabokov o terceiro mais importante do século XX, logo a seguir a Ulisses de Joyce e Metamorfose de Kafka e antes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust."
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[do blog da Relógio D' Água]

6.11.10

Silvestre

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Silvestre (1981), de João César Monteiro, hoje, às 15.30, na Cinemateca.

4.11.10

Mário Cesariny na Relâmpago

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(clicar para aumentar)

O número 26 da revista Relâmpago é dedicado à poesia de Mário Cesariny. O lançamento é hoje, às 18.30, na livraria da Assírio & Alvim, com apresentação de Fernando Cabral Martins. Serão lidos alguns poemas de Cesariny pelos actores Eurico Lopes e Paulo Pires.

3.11.10

Está a chegar

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Apanhar Ar, de Adília Lopes, na Assírio & Alvim.

29.10.10

O regresso da Trama

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A livraria Trama reabre hoje, às 18h, após uns meses de ausência. Está na mesma rua, um pouco mais acima.

27.10.10

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OS CAFÉS
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Nos café desenham os paisanos, vulgares
senhores de bagaço e genebra, raspando o mármore
entre as folhas do jornal. Morrem os cafés
com seu bilhar, bengaleiro e escarrador. Música
de rádio ainda sintoniza a serradura e os vidros
baços quando chove. Recordo cafés
da província, ou da cidade grande,
destruídos por ímpias criaturas do plástico.
Já não servem cevada ou eduardinho e o açúcar
não vem no açucareiro. Alguns ainda assinam
os jornais, o cobre limpam e pagama
os paquetes. Autorizam cauteleiros, a caixa
do engraxador, a rapariga das violetas. Violentam
os cafés aqueles da usura, ratos do cimento.
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Avesso à militança, são os cafés retrato militante
de algumas senhoras de batina e capa, entornando
no pires o leite do caniche. Alvoraçados os velhos
titilam nas retretes e os tabacos esgotam-se em suspiro.
São cafés com espelhos e amarelas luzes onde o néon
ainda não entrou. Também de padres são feitas
essas lojas; de marçanos, rapazelhos e trapistas.
Desenvolvo teorias sobre os ditos. Em tempo de ditadura
era o café a teia da intriga, o bocejar jacobino,
o guarda-chuva pingando tristes ais. Insisto pois
no rádio e radiador. Quem lembra os pianos?
Carambolas secas já cortavam o fumo dos charutos;
no marcador quinze de partido; na mesa ao fundo,
igual à história antiga, dois jogadores de xadrez ou de gamão.
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[Eduardo Guerra Carneiro, in Contra a Corrente, & etc, 1988]

26.10.10

A biblioteca de Fernando Pessoa

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A Casa Fernando Pessoa digitalizou a totalidade dos 1140 livros que constituíam a biblioteca particular de Fernando Pessoa e disponibiliza-os aqui.

25.10.10

"... o espaço dedicado à crítica tem vindo a diminuir drasticamente; estamos hoje reduzidos ao modelo da pequena recensão com intuitos de divulgação (a crítica propriamente dita requer um discurso argumentativo que o modelo jornalístico actual não contempla e até evita); a literatura perdeu o espaço e o prestígio que tinha e o 'espaço público' literário é de uma grande exiguidade; as páginas dedicadas à literatura têm de competir no grande campeonato da cultura do espectáculo; o crítico deixou de saber para quem escreve. A velha função social e de orientação que a crítica teve perdeu-se quando deixou de existir a sociedade cultural e literária vital e reactiva (com os seus debates, as suas polémicas, etc.), que constitui a própria condição de possibilidade da crítica. Destituído da sua função civil, o crítico desapareceu, tal como desapareceu a figura do intelectual. O primeiro foi substituído pelos mediadores culturais, tal como o segundo pelos profissionais da opinião."
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[António Guerreiro, Actual (suplemento do Expresso, 23-10-2010]

22.10.10

Feira de alfarrabistas no Príncipe Real

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Inserida na iniciativa "Noites Claras" está a decorrer uma feira de alfarrabiastas no Jardim do Príncipe Real. É hoje o último dia.

21.10.10

Já está nas livrarias

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Pan, de Knut Hamsun, na Cavalo de Ferro, editora que publicou também o genial Fome.

12.10.10

Estão a chegar

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O Bebedor Nocturno e As Magias, de Herberto Helder, na Assírio & Alvim.

1.10.10

“Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda-livros.”
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[Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 5ª ed., 2005]

30.9.10

“Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha recta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha recta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma outra, ou foi a terceira que tardou.”
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[Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 5ª ed., 2005]

29.9.10

“Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais. É preciso criar dignidade no cinema. […]
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As salas de cinema já não são dignas dos filmes?
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Não. É uma coisa para aventuras infanto-juvenis. A maioria das pessoas que vão ao cinema são miúdos. Os adultos têm mais relação com as séries televisivas americanas, onde há mais cinema clássico, do que em filmes com três mil planos. Hoje, ir ao cinema é consumir, tanto faz comprar sapatos como ver um filme. Desapareceu a ideia da sala escura, a dignidade do espectáculo.”
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[João Botelho em entrevista ao Ípsilon (suplemento do Público), 24-09-2010]

28.9.10

Filme do Desassossego

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Estreia amanhã, dia 29, no CCB (às 21.30), o Filme do Desassossego, de João Botelho, baseado no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares.
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O filme não terá a habitual distribuição em salas de cinema. Depois da estreia, estará mais três dias no CCB (1, 2 e 3 de Outubro), percorrendo depois todo o país: Porto, Arcos de Valdevez, Famalicão, Guimarães, Braga, Montalegre, Lamego, Vila Real, Figueira da Foz, Coimbra, Estarreja, Cascais, Beja, Leiria, Odivelas, Viseu, Funchal, Castelo Branco, Guarda, Covilhã, Santarém, Sintra, Portimão, Almada, Évora, Tavira, Ponta Delgada e outras localidades.

21.9.10

Lisboa Domiciliária

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Lisboa Domiciliária, excelente documentário de Marta Pessoa, chegou agora ao circuito comercial (está no cinema Alvalade).
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Trailer:

20.9.10

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“… por muito desenfadado o tom destas conversas críticas à lareira elas não revelam menos por isso de um intenso conhecimento do meio literário e de um plano fundamentado e premeditado. O qual seja, para não estarmos aqui com embustes ou ambiguidades escusadas: fazer o que geralmente não vejo que se faça, isto é, aclarar publicamente tramas que se ocultam, apontar flibusteiros das Letras, pondo-lhes a careca à mostra embarrilando-os pela gargalhada: sempre que preciso, denunciar os compromissos de vária ordem em que se atolam os nossos pseudointelectuaizinhos que por aí andam a governar-se à larga, seguros da sua impudência e da sua impunidade mercê das circunstâncias. Quem me conheça um tanto, sabe que outra coisa não tenho tentado durante vinte anos de editor, sacrifícios muitos e as consequências por vezes molestas, mas cá me vou aguentando, embora lhes pese. Não parti com muitas ilusões (isto desde 1945) nem as mantenho hoje muito menos, mas aposto que alguma coisa se conseguiu. E por meu intermédio, gente honesta e franca, de bom-senso e bom gosto, riu à vontadinha de contrafactores tão declaradamente cómicos como eram e são os drs. Urbano, Salema, Nemésio, David e mais espantalhos quejandos.”
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[Luiz Pacheco, Notícias Luanda, 17-10-1971, in Figuras, Figurantes e Figurões, O Independente, 2004]

16.9.10

Já está nas livrarias

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N.º 14 da Telhados de Vidro, editora Averno.

13.9.10

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SUPERMERCADO
para a Ana Paula Inácio
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Tenho 38 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros, uma garrafa de Famous Grouse
e pelo menos seis latas de Superbock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocupam a casa.
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É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
- e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.
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Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo que sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.
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[Manuel de Freitas, in A Nova Poesia Portuguesa, Poesia Incompleta, 2010]

10.9.10

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“Nenhuma relação existe entre a minha profissão e os versos que faço. E não é esse o mal. O mal está no carácter desapaixonado, frio, mecânico do trabalho; na ausência de uma participação da inteligência e da sensibilidade na maioria das actividades profissionais; na servidão implacável do homem instalada no próprio cerne de uma civilização que se propõe, justamente, abolir a servidão. O mal é a ausência do homem. «O deserto cresce», dizia Nietzche. O deserto não cessa de crescer. Numa sociedade alienada até à medula, como a nossa, só a vagabundagem tem a força e o prestígio de um destino; mas vagabundo parece que não chega a ser profissão, salvo quando se tem conta farta no banco. Como não é o meu caso, e a poesia não dá para pagar o almoço, o jantar, e outra vez, e outra vez, até ao fim do mundo, parece não haver saída. Enquanto se não descobrir como há-de viver o poeta sem comer, não haverá solução para estas cigarras que persistem em sonhar alegria até ao seio da morte. A não ser que se ponha em prática o que Platão já aconselhava na República: desterrá-los, simplesmente. «Para quê poetas em tempos de indigência?»”
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[Eugénio de Andrade, in Rosto Precário, 6ª ed., Fundação Eugénio de Andrade, 1995]

7.9.10

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[Fernando Lemos, Luzes do Chão]

2.9.10

“Há uma certa necessidade cultural de travar um combate persistente contra a máquina de editoras de vocação hegemónica, tentando dominar o mercado do livro português, jogando para isso no plano das próprias distribuidoras tentaculares. Os autores portugueses empenhados nos processos da mudança, que são sempre os das propostas literárias mais actuantes, deviam recusar-se a serem editados por empórios para os quais o livro é objecto da mais descarada mais-valia.”
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[Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981]

21.8.10

Manuel Hermínio Monteiro: a entrevista ao DNA em 2001

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O DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 12-05-2001 publicou aquela que penso ter sido a última entrevista dada por Manuel Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim, que viria a morrer em Junho desse ano. Foi uma longa entrevista, conduzida por Anabela Mota Ribeiro. Deixo-a aqui:
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MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO
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A conversa seguinte aconteceu numa destas tardes de sol. Do sol radioso que encharca de esperança os primeiros dias da Primavera. Manuel Hermínio Monteiro, o mítico editor da Assírio & Alvim, refastelou-se no sofá para desfiar o novelo da sua vida cheia. Como ele diz, logo no começo, a ponta pode ser a que nos aprouver que há-de sempre dar no mesmo.
Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.
Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.
A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.

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Começamos por onde?
- Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.
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A vida anda às voltas?
- Muitas. A minha é uma vida muito cheia.
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Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.
- Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.
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O seu lado do Douro é o do Pinhão.
- A minha terra é mais para o interior, perto de Murça. Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.
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Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?
- Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.
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Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.
- A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta os da quarta, alguns já com 17/18 anos.
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Passavam directamente do campo para a escola?
- Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres, vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dá-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.
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A professora era quem? Uma moça da aldeia?
- Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.
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A professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.
- Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições…
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Como é que já sabia?
- Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.
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Ouvia-os do recreio?
- A escola era mesmo no meio da aldeia, ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois, a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.
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A felicidade não existe?
- Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar uma mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.
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O que é que se pode retirar dessa lida diária?
- Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?
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Da aldeia, dos parcos recursos.
- Como é que com pouquíssimos livros… raramente víamos um livro, uma imagem.
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Não tinham livros em casa?
- Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festa feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho rangia, a luz da lareira era móvel, parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinante, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que ainda não havia esta dispersão que há hoje.
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Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?
- Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.
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O que representava a sua família na aldeia?
- Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo, a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.
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Naquele tempo eram comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.
- Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.
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E gostava ou não?
- Às vezes apertavam-me demais, já fugia. Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.
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Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?
- Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nessa altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos, isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avô fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.
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Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?
- Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.
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O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.
- E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saudade, a Sra. Da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo.
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Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?
- Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.
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Há a televisão.
- E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje, na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora.
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A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?
- Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.
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Os seus pais trocavam o quê?
- O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.
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A relação era muito mais desprendida com os objectos. Quer trocas eram as suas?
- Nós só jogávamos ao botão.
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A sua primeira namorada era da aldeia?
- Sim.
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Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, no fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.
- Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.
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Uma praxe. E nisto já estamos no Porto.
- Depois da Primária, estive dois anos nos Salesianos, em Arouca, e depois perto de três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.
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Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?
- Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.
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O que era tão fascinante?
- Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada…) viam coisas.
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Também via coisas?
- Uma vez estendia a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastiadores dos altares…
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Chegou a ser acólito?
- Ajudar à missa? Montes de vezes.
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Não estou a vê-lo feito papinho de anjo…
- Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bens comportados.
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Demorou quantas horas a chegar?
- A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para chegar ao Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à esoera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas de beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.
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Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?
- O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal.
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Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?
- Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal tal tal..» Já estava decidido que ia estudar, tinha um jeitinho, portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.
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Cortou com o universo encantatório da infância.
- Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se uma relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» (sorriso).
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Davam-lhe sopas de vinho?
- Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.
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O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?
- Ah, o que eu mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.
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Pela sua professora, tinha uma paixão?
- Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias dela!
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A sua memória é prodigiosa.
- Dessa coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.
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Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?
- Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa, como as mulheres lá de cima.
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Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.
- Olhe que há muitas coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.
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Então vamos ao Porto.
- O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.
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Impressionava-o de que maneira?
- Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei o que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.
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Como é que entra nessa roda dos bailes?
- Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente – estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos, iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.
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Era profundamente crente?
- Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as mesmas inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima… Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.
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Frequentavam bordéis ou putas de rua?
- Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear… O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.
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Escrevia para as raparigas?
- Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.
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Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?
- Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza… Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.
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Essa «imaginação» deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?
- Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder…; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr…
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Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.
- Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para as sécias, comprava meia-dúzia todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tira-colo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar para o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura, o tempo não chegava para nada, nada!
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Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência que se perde. As pessoas deixam de ser puras.
- Chega a uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito…
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Esteve ainda um ano em Direito.
- Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.
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Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.
- O que queria era ser poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito… Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.
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É o seu lado aldeão.
- Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não consigo atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! (riso)
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Os seus pais acompanhavam o seu projecto?
- Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?
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Quero.
- [Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]. Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?
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Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.
- Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.
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Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.
- Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões a tipos do PC, a tipos da PIDE. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.
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Discutindo a situação do país?
- Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.
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Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?
- Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.
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Foi tudo hiperbolizado.
- Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.
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Tinha algum amigo da escola primária?
- Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu.
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Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.
- Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisso mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinam-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.
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Quando é que encontra o Agostinho da Silva?
- Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos (com o cio, o cheiro é insuportável).
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A sua gata, Gueixa, cheira?
- Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.
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Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a relação com as letras e com a Assírio.
- No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.
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Estavam ligadas para si essas duas componentes, a religiosa e a política?
- Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me enxertos de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava: «Por que é que me está a bater?»
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A sensação mais forte é o medo?
- É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo…
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Custa-lhe?
- Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim: «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».
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Quanto tempo esteve?
- Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas com sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.
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Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?
- Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.
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Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.
- É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar, mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá um escritório e deu uma mão, mais duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.
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Já tinha acabado o curso?
- Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte de vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.
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Vivia desse pequeno trabalho?
- Já tinha um outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.
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Conheceu essa malta?
- Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.
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Na Assírio assume, em 78, a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.
- E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.
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Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?
- Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.
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Na base da mochila às costas?
- Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.
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O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?
- Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.
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Tinha desistido do sonho de ser poeta?
- Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa… Não sei se é muito importante.
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Realmente?
- Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr…
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O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.
- E a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.
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Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países, vendem-se como pão quente.
- Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer, sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Rui Cinati que ia diariamente à Assírio…
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As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?
- É. Mas não é preciso contar isso.
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O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.
- Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio, com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade: falamos dia sim, dia não.
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Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.
- É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.
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Prefere que as coisas lhe aconteçam?
- Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas, nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.
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Poucas foram, então, as opções de vida tomadas de forma categórica.
- Sim. No trabalho, claro, é diferente.
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A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas, a relação com o divino?
- É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa por conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».
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Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas e da terra.
- É a mais importante.
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E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.
- Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo-riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva absolutamente a nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.
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Na altura já sabia disso?
- «O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos a França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância de neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.
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Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia…
- Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa, algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro, em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter, não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.
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Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?
- Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.
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Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?
- Se morrer quero ir para a minha terra.
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Foi nisso que imediatamente pensou?
- Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto… Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.
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Porquê os melros?
- É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos, havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.
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Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?
- Quando comecei a sentir a poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»
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Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?
- Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.
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Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?
- Ao meu pai gosto muito de o abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.
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As partes mais íntimas de si ficam para quem?
- São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores… Isso passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Pelo contrário, agora tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe nada.
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Que idade tem?
- 48.