31.3.08

Feira do Livro Manuseado

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Imperdível, a feira do livro manuseado que a Assírio & Alvim está a organizar na sua livraria, na Rua Passos Manuel e que acaba já depois de amanhã. Aguns exemplos do que podemos lá encontrar:
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Uma Coisa em Forma de Assim, de Alexandre O'Neill, a 7 €.
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Manual de Prestidigitação, de Mário Cesariny, a 5€.
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O Processo, de Franz Kafka, a 8€.
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Poesia, de Teixeira de Pascoaes, a 12€.
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O Livro de Cesário Verde, de Cesário Verde, a 9€.
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Poesia Completa, de Mário de Sá-Carneiro, a 7€.

29.3.08



[André Breton, Tristan Tzara, Greta Knutson, Valentine Hugo, Cadavre Exquis, 1933]

28.3.08

Mário Cesariny: a entrevista ao Independente (1988)

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Está quase a fazer 20 anos que saiu o primeiro número d’ O Independente. Foi a 20 de Maio de 88 e logo no primeiro número foi publicada esta entrevista a Mário Cesariny feita por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas:
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A CONVERSA DE CESARINY
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Mário Cesariny é um génio mas não tem culpa. Os génios fazem falta em Portugal. Cansado por causa da inauguração da sua exposição, na véspera, informa-nos que tomou um comprimido para espevitar. Deita-se ao comprido arranjando as almofadas. Está mortiço. Ri-se: «Se calhar tomei a pastilha errada». Levanta-se. Liga um Grundig gigantesco dos anos 50. Sai ópera. Deita-se. Depois levanta-se outra vez. Puxa pelo fio eléctrico e com um safanão desliga a telefonia. Passaram dois minutos. Volta a deitar-se. Olha à volta. Anima-se: «Se calhar, já posso tomar um Optalidon!» Levanta-se e vai ao tupperware onde tem os remédios. Com um sorriso de puto-da-cola mete o comprimido na boca e diz: «Agora vamos ver como é que a diligência salta!» A diligência salta.
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O Independente – Lê jornais?
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Mário Cesariny –
O «Diário de Notícias» todas as manhãs. Eu acho que até é um bom jornal, mas quando a gente acaba de ler é um desânimo muito grande. Também não sei o que é que se devia ler…
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Porque é que fica desanimado?
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São só desgraças… Ardeu o poço do petróleo, mataram três à esquina da brasserie, sida aumenta, vulcão explode. Isto são as notícias em Portugal. Aliás… se os jornais dessem notícias felizes, vinha tudo para a rua, era uma revolução. Assim, as pessoas ficam em casa cheias de medo.
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Compra jornais para o fim-de-semana?
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O «Expresso» e o «Semanário». Mas é outro horror, por causa do peso – são quase trinta toneladas de papel, mas lêem-se num instante.
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Gosta da televisão?
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É raro. A televisão ainda dá piores notícias. Tenho vontade de escrever cartas, partir o aparelho.
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A televisão é má em si própria?
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É um abuso. Havendo alguém em casa é impossível não a abrir, depois é impossível não a olhar. A televisão é um narcótico: boa para os governos e para a polícia.
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Não tem utilidade?
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Só para os casais desavindos e para as discussões de família. Põem-se todos a ver e daí a dez minutos acabou.
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Porque é que os portugueses gostam de ver televisão espanhola?
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Porque sempre se percebe menos.
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É sócio do Grémio Literário?
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Fui proposto. Morreu não sei quem e o Sales Lane, com boa vontade, propôs-me. Tentei averiguar se podia lá ir comer à borla. Eu só queria aproveitar uma vez por mês… Mas não – é só para pôr um fato giro e ir como os outros. Portanto, não me interessou.
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Tem ligações à Associação Portuguesa de Escritores?
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Acho que sempre paguei quotas até que percebi que ninguém paga – e deixei de pagar. Aquilo não serve para nada… nem dado.
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Dá prémios…
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O David Mourão-Ferreira recebeu quatro no mesmo ano. Ora, quatro prémios pela mesma coisa dá uma imagem de país de imbecis e doidos varridos. Isto contado em França dava cancelamento de passaporte.
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Porque é que os escritores nacionais têm pouco conhecimento dos estrangeiros?
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Tiraram-lhes a Galiza. A mim não me faz falta; mas a eles, a isto aqui… Sempre era mais gente para ajudar.
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A Biblioteca Nacional serviu-lhe de alguma coisa?
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Gosto da gente de lá. E fiz lá um estudo obre a literatura de cordel.
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Usa dicionário?
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Consulto muitas vezes. Primeiro, porque estou um bocado desmemoriado. Segundo, porque já apanhei três reformas ortográficas. Põe acento, tira acento; e há o caso do c, que nunca se sabe onde fica, se no bolso se à cabeça.
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NOVOS ESCRITORES
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Conhece os novos escritores?
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O Dante impressiona-me muito. A história do novo para mim não funciona. O actual é um bocado perigoso.
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A sério…
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Há por aí um espanhol que jura que o Sol anda à volta da Terra. É muito interessante.
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Mários Cláudios, Saramagos, dizem-lhe alguma coisa?
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Ainda não li. Mas pergunto a pessoas de confiança. E tenho duas informações curiosas. Chega-se à oitava página do Saramago e ainda não se viu um ponto final. É a primeira. A segunda é que diz mal do D. João V. Mas a família real não era nada daquela besteira.
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Agustina é um caso.
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A gente abre uma página do livro dela e percebe que é boa em qualquer parte do mundo. Complica, mas isso não é defeito.
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Confia nos críticos literários?
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Não me costumam dizer se um livro é uma novela histórica ou uma ficção científica. Li na revista mexicana «Vuelta» que o Memorial do Convento é uma novela histórica. Aqui não dizem o que é nem se chega a saber se gostaram ou não.
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Foi sempre assim?
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O Gaspar Simões faz muita falta. Mesmo quando dizia asneiras a gente sabia onde ele estava e ele sabia quem era. Depois de ele se ter ido embora não há outra referência. O Gaspar Simões ensinou muitos escritores como se escreve. Ele dizia que isto estava bem; e aquilo, mal. O Alves Redol, no livro seguinte, emendava.
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E o Eduardo Prado Coelho?
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Aqueles artigos de três páginas que ele publicava no «Diário de Lisboa», sobre o neo-realismo, a semiótica e a metalinguagem! Depois deixou-se disso… e eu sinto falta.
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PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS
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Vai ao teatro em Portugal?
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Nunca. Sempre foi mau e agora exageram.
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Gosta das cidades?
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Porto e Lisboa, sim. Coimbra não me convence, não me apetece descer do comboio.
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Tem parecer sobre as amoreiras?
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Não acho mal. É uma extravagância. O monumento aos Descobrimentos em Belém é muito pior. Devia ser rapado dali.
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Prefere a Lisboa Pombalina?
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A Baixa desenhada pelo Marquês é fantástica. Tem as proporções certas – não humilha nem envergonha. A Baixa podia ser Nova Iorque no século XVIII.
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Porque é que toda a gente passa férias no Algarve?
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Não vale a pena protestar. Acho que são todos ingleses, já. O mais engraçado é que o Algarve é o único sítio do mundo onde há ingleses pobres. Electricistas e gente assim…
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O Cesariny fuma a rodos. O Estado quer proibir o tabaco…
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Cada época tem os seus puritanismos. Agora é o tabaco. Há uns dias ia de táxi e ouvi uma descompostura medonha. O condutor era um rapaz novo e começou a praguejar – porque os senhores são assassinos, prejudicam o próximo, portam-se como suicidas. Tive de o mandar parar e saí. Paguei só para não ter de o ouvir mais.
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Mas o cigarro vale a pena?
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O fumo dos cigarros é o luxo dos pobres. Quem não tem dinheiro para ir ao cinema acende um cigarrito. Alivia.
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E o 25 de Abril?
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Foi uma revolução ortodoxamente neo-realista, com Óscar Lopes em presidente de Portugal.
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Colonialismo, ainda há?
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Começou outro. Quando o Samora Machel cá veio foi ver a Sé Velha a Coimbra. Ficou encantado – isto é que é! Estava deslumbrado. Percebi, então, que os chefes africanos não querem ser chefes africanos. Sonham com o Reagan, o De Gaulle, o Salazar. Imaginem o Hegel a 60 graus à sombra! Falam de Marx. Isto é, dispensam o que é verdadeiramente negro. A verdadeira colonização começa agora.
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Quem se dá mais ao respeito: um rei ou um presidente?
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Um, outro ou nenhum. Mas esta história do Gorbachev faz-me pensar nisso. Dizem que é bem intencionado. Mas vai falhar. E se falhar é porque não tem a coragem de ir ao tesouro imperial dos czares. Ia lá, agarrava na coroa e punha-a na cabeça. Mal o fizesse, aquelas repúblicas maravilhavam-se. É como os ingleses. A rainha não serve para nada, mas há um sagrado que conta. Só não sou monárquico por não haver eleições tibetanas, em que os velhos vão aos tugúrios e escolhem uma criancinha. Às vezes, claro, também se enganam.
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PORTUGAL E A EUROPA
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Sente-se bem na Europa?
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A CEE quer dizer: tu plantas batatas, ele planta tomates, os morangos vêm de acolá, as calças de ganga fazem-se ali. Depois, todos consumimos. Isso é o lado melhor.
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Traz dinheiro.
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As massinhas que vêm, acho que já foram todas gloriosamente gastas a comprar automóveis e quintarolas. Mas a Europa não se deve zangar muito com isso. Ao menos, nós nunca faremos a bomba atómica.
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Portugal é europeu?
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As instituições são. O povo não. Mas eu gosto do atraso. Digo mal da Europa mas, apesar de tudo, é um quadrado onde nos deixam morrer à vontade. Viver é que não.
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O português não pode ser internacional?
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Eu já andei à procura do esquimó. Essa ideia da nação, no sentido mais antigo, está além-fronteiras. Quer dizer, o português pode ser alheio à coisa nacional e à coisa internacional. Não há ninguém tão português como o Teixeira de Pascoaes. Os pés e os sapatos dele são portugueses. Mas o resto dele é universal. Não tem que ver com Lisboa, Madrid ou Londres – o resto dele á com as estrelas.
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Os portugueses mudaram.
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Já não há povo que queira ser povo. Era povo, e queria sê-lo, a rapariga que aparecia de lenço, o rapaz de bigode e da patilha. O povo agora tem pena de ser povo. Quer vestir ganga ou calcinha de flanela. De fora só ficam os ciganos. Continuam a ser o que já eram. E os analfabetos. São uma reserva: De gente ainda não doutrinada. Mas também devem estar a dar cabo deles.

26.3.08

Manual de Prestidigitação: a crítica de Pedro Mexia

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Pedro Mexia fez a crítica a Manual de Prestidigitação, de Cesariny, quando foi publicada a 2ª edição revista em 2005. Foi no Diário de Notícias de 6 de Abril:
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Como estar egípcio e mudado
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Como se escreveu nesta página a propósito da recente reedição de Pena Capital, a obra poética de Mário Cesariny é um constante work in progress. Assim, estas reedições não apenas retomam colectâneas anteriores como trazem emendas, supressões e acrescentos.
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É o caso de Manual de Prestidigitação, que aparece agora em "2ª edição, revista" (a primeira é de 1981, embora várias partes tenham tido edição autónoma nos anos 50). Manual de Prestidigitação, não sendo tão imprescindível como Pena Capital, é mesmo assim um Cesariny significativo em termos de vitalidade poética e que documenta o seu aspecto mais paródico e lúdico. Mas não se esgota nesse aspecto.
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As secções "Burlescas, Teóricas e Sentimentais" e "Visualizações" partem de um imaginário todo cantigas de amigo, romances populares e ladainhas de romaria para o transformarem de modo radical. São textos que convivem com exercícios de desmontagem do quotidiano, da previsibilidade burguesa e da linguagem codificada. Cesariny tanto emprega a rima clássica, com grande aptidão, como procede a desconstruções fonéticas, tanto é campestre como ensaia uma artificiosa peça musical. Por vezes, o discurso joga numa evidente ambiguidade, revisitando a poesia portuguesa, da écloga a José Régio, com alguma intenção paródica mas sem recusar totalmente o cunho sentimental que é o nosso mais permanente património. Nalguns momentos, é mesmo possível que um admirador da poesia tradicional se deixe enganar pelo toada, mas Cesariny logo se entrega a exercícios de profanação suave (como contar as sílabas do Credo e da Ave Maria) e outros boicotes.
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Em "Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor" o jogo é mais propriamente surrealista, com delirantes entradas de dicionário, definições absurdas e trocadilhos e neologismos de toda a ordem (ou por outra contra toda a ordem). Esta colectânea tem mesmo algum surrealismo ortodoxo, com automatismos, imagens surpreendentes e alheias a todo o gosto contido, e com intensas correspondências poéticas: "É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia/ é preciso dizer azul em vez de dizer pantera / é preciso dizer febre em vez de dizer inocência" (pág. 128). Ou ainda com os célebres e deliciosos inventários: "vinte e quatro tragédias burguesas / dois casais cheios de felicidade / nove mulheres casadas (portuguesas) / e um caso de mendicidade // um coronel reformado um visconde nazi uma sorte adversa / uma vista para o campo uma menina Ester / um prédio em construção dois dedos de conversa / um lindo rapaz que adora perder // uma prostituta elegante dois galos sem crista / uma vida sem vida um defunto a viver uma vida asquerosa / dois carris de ferro o filósofo existencialista / e / um cínico e a esposa" (pág. 79).
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Por outro lado, este é um dos livros em que se concretiza um constante diálogo com Pessoa. Não tem a acidez de O Virgem Negra, mas retoma directamente Campos e mesmo a prosa do ortónimo "eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa) / num café da baixa por ser incapaz coitados deles / de escrever os meus versos sem realizar de facto / neles, e à volta sua, a minha própria unidade / - Fumar, quere-se dizer // esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava ver num livro de / versos. Pois é verdade. Denota a minha essencial falta de higiene / (não de tabaco) e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro) / notável // o Armando, que escreve à minha frente / o seu dele poema, fuma também, / fumamos como perdidos escrevemos perdidamente / e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta / mais espantosa e violenta incompatível e reconfortável / do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros / (excepto coisas como vergonha, naturalmente, / e mortalhas) // (que se saiba) esta é a primeira vez / que um poeta escreve tão baixo (ao nível das priscas dos outros) / aqui e em parte mais nenhuma é que cintila o tal condicionamento de que há tanto se fala e se dispõe / discretamente (como que as apanha. ) // sirva tudo de lição aos presentes e futuros / mas taménidas (várias) da poesia local. / Antes andar por aí relativamente farto / antes para tabaco que para cesariny / (mário) de vasconcelos" (págs. 95-96).
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No «discurso ao príncipe de epaminondas» (uma das muitas personagens que pontuam este livro) encontramos uma espécie de solenidade "moral" (palavra equívoca, reconheço), que nunca esteve ausente em Cesariny, uma solenidade impregnada de lirismo e com evidente conotação sexual "Despe-te de verdades / das grandes primeiro que das pequenas / das tuas antes que de quaisquer outras / abre uma cova e enterra-as / a teu lado / primeiro as que te impuseram eras ainda imbele / e não possuías mácula senão a de um nome estranho / depois as que crescendo penosamente vestiste / a verdade do pão a verdade das lágrimas / pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela" (pág. 146).
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Mesmo (ou especialmente) numa colectânea como esta, que parece uma espécie de laboratório, Cesariny nunca é apenas o desmistifacador insolente é sempre também terno e comovente. Às vezes basta a repetição (e a colocação gráfica) de um verso aparentemente anódino como "onde está a camisola" ou mesmo o simples "e depois?" ou (caso do poema "julião os amadores") para conseguir esse efeito. Ou então surgem a repetição e anáfora, que nunca soam escusadas. Ou o emprego sempre poderoso do dístico ("queria de ti um país de bondade e de bruma / queria de ti o mar de uma rosa de espuma"). Uma retórica ao serviço de uma (nobilíssima) visão.
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Cesariny tem paródia, mas também tem pathos "como a vida sem caderneta / como a folha lisa da janela / como a cadela violeta / - ou a violenta cadela? // como estar egípcio e mudado / no salão do navio de espelhos / como nunca ter embarcado / ou só ter embarcado com velhos // como ter-te procurado tanto / que haja qualquer coisa quebrada / como percorrer uma estrada / com memórias a cada canto / como os lábios prendem o copo / como o copo prende a tua mão / como se o nosso louco amor louco / estivesse cheio de razão" (pág. 81). Não são dois Cesariny: é sempre o mesmo, e só precisamos de perceber, a cada momento, o tom certo.
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Depois da nova Pena Capital, parece mesmo que caminhamos para uma fixação do cânone poético de Mário Cesariny de Vasconcelos. Num poema de Manual de Prestidigitação, o autor escreve a certa altura que "consumada a Obra sobram rimas". Mas, neste caso, sobra muito mais que isso sobra a violência, a irrisão, a comoção.

25.3.08

Manual de Prestidigitação

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Acabou de sair na Biblioteca de Editores Independentes a edição de bolso de Manual de Prestidigitação, de Mário Cesariny.
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Numa altura em que os grandes grupos editoriais vão absorvendo editoras em catadupa, aquelas que eu considero as melhores editoras portuguesas, Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D’Água, não ficam de braços cruzados e respondem à altura. Uma das suas iniciativas recentes é esta magnífica colecção de livros de bolso, de que já falei aqui.
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Desde Junho de 2007 a BEI já lançou mais de trinta livros de autores como Cervantes, Pessoa, Pascoaes, Dostoiévski, Baudelaire, Shakespeare ou Gógol. Uma aposta arriscada, que não faço ideia se está ter o devido retorno financeiro. Eu pela minha parte já comprei uns quantos e tenho visto alguns em transportes públicos.
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Este que saiu agora, Manual de Prestidigitação, é um dos pontos altos da obra de Cesariny. Foi lançado originalmente em 1981, embora integrando algumas partes já anteriormente publicadas. Em 2005 saiu a 2ª edição (revista, como era habitual no autor).

23.3.08

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hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros
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ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt... uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir
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preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado
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Sem Jeito Para o Negócio
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[Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, 2004]

21.3.08

arte de ser natural com eles
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Senhor Fantasma, vamos falar
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Tudo foi e tudo acabou
numa cidade venezuelana
Boa parte de mim lá ficou
não vês senão o que voltou
no princípio desta semana
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Senhor Fantasma, em que é que trabalha?
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Em luzes e achados
chãos e valados
barcos chegados
Procuro os meus antepassados
altos hirsutos penteados
mudos miúdos desprevenidos
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Senhor Fantasma, a vida é má
muito concerto pouca harmonia
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A vida é o que nos dá
Não quero outra filosofia
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Senhor Fantasma, diga lá
que estrela se deve seguir?
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(Mestre Fantasma: Ah, ah, ah!)
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Senhor Fantasma, vamos dormir
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[Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, 2004]

19.3.08

exercício espiritual
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É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
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É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
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[Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, 2004]

13.3.08

Mas não se pense que só os escritores portugueses é que são vergastados por VPV…

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“O Kundera é abaixo de cão! Também, que noção de cultura pode ter um desgraçado de um exilado que viveu no meio da Europa Central! Tudo aquilo é de uma vacuidade filosófica e intelectual, de um sentimentalismo absolutamente desgostantes! São romances para Linda-a-Velha, sem desprimor para com a terra, enfim, são romances para suburbanos. Correspondem àquela noção de cultura que o suburbano tem: o suburbano acha que deve ter móveis baratos e casa, um mil e seiscentos à porta e passar férias em Portimão. O Kundera é um sub-produto que só satisfaz pessoas muito ignorantes, que nunca tenham lido mais nada.”
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[Vasco Pulido Valente, revista Ler nº 5, Inverno de 1989, depoimento recolhido por Inês Pedrosa para a rubrica “A Biblioteca de…”]

12.3.08

E agora um pequeno apontamento de humor

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“O grande romance português depois de Os Maias é Adeus Princesa de Clara Pinto Correia. Os outros têm todos o mesmo tom e são escritos só para o meio dos intelectuais e críticos. Exceptuando o Cardoso Pires, que se esforça por escrever sobre a sociedade portuguesa contemporânea. A Agustina ofusca pela retórica bebida na tradição portuguesa do sermão, mas tudo aquilo, descodificado, é nada, ou é uma patetice. O Vergílio Ferreira é muito mau escritor, de terceira ou quarta classe. O Saramago ainda consigo ler até ao fim – mas o que aquilo tem a ver com Portugal é nada. A Jangada de Pedra é uma história para crianças escrita num tom arrebatadamente lírico. A Natália Correia é um compêndio de escrever mal. Mas é assim, o que é que se pode esperar de um país que tem entronizado como grande escritor o Torga, o mestre Torga que anda por aí com a sua boina feito parvo? As invenções de Portugal são espantosas. A última é Agostinho da Silva. E ainda há o Lobo Antunes. A esse, francamente, nem acredito que alguém o leia. Eu, que tenho uma grande embocadura, consigo ler tudo – é uma das minhas poucas qualidades –, nunca consegui ler um livro dele até ao fim.”
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[Vasco Pulido Valente, revista Ler nº 5, Inverno de 1989, depoimento recolhido por Inês Pedrosa para a rubrica “A Biblioteca de…”]

11.3.08

A Naifa: documentário

Vale a pena ver este documentário sobre A Naifa, surgido a propósito do lançamento do álbum anterior:
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10.3.08

A Naifa: novo álbum

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A Naifa tem um novo álbum, a lançar ainda este mês. Depois de Canções Subterrâneas (2004) e 3 Minutos Antes da Maré Encher (2006) sai agora Uma Inocente Inclinação Para o Mal.
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O disco pode ser comprado nas lojas no dia 30 de Março. Quem não quiser esperar tanto, a partir de dia 15 pode comprá-lo nos locais por onde vai passar a próxima digressão, juntamente com os bilhetes.
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O calendário da digressão é o seguinte:
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Entretanto no site da banda pode ouvir-se desde já um excerto de cada música, para ir abrindo o apetite.
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A música que deixei aqui em baixo, Señoritas, é do álbum anterior.

9.3.08

A Naifa "Señoritas"

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[do álbum 3 Minutos Antes da Maré Encher, 2006]

[Francis Picabia, Balance, 1920]

5.3.08

Byblos e Trama

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Quando abriu a Byblos, fiquei bastante desiludido com o que vi (escrevi na altura este post). Agora que já passou algum tempo, muitas melhorias foram feitas: já há mais livros disponíveis, a secção de poesia já é apresentável, embora não muito completa, os ecrãs de pesquisa já funcionam e o site está melhorzinho.
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De qualquer forma não me parece que esta livraria acrescente muito àquilo que já ofereciam as Fnac, ao contrário do que foi apregoado. Não sei se terá mais livros, as tecnologias não me convencem e sobretudo não me agrada a imagem. Concordo com o Eduardo Pitta quando ele diz aqui que “A parte subjectiva decorre de não apreciar a decoração, a arrumação, os adereços, o mobiliário e os candeeiros do redondel de leitura, nem, de modo geral, da imagem.” Claro que, mesmo assim, quanto mais livrarias melhor, mas sabe a pouco.
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Entretanto, não muito longe, na Rua São Filipe Neri (junto ao Rato) abriu mais uma livraria, a Trama. É uma livraria muito original: pequena e com pouquíssimos livros, tem no entanto coisas curiosas, já que mistura livros novos com livros usados, criteriosamente escolhidos e arrumados de uma forma um bocado caótica. Acaba por ser muito fácil entrar só para dar uma vista de olhos e acabar por levar um livro de poesia há muito esgotado ou alguma coisa que nem se sabia existir. A livraria tem uns sofás confortáveis no primeiro andar e o atendimento é muitíssimo simpático.
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A Trama promove ainda, com regularidade, leilões de livros (raridades, primeiras edições). O único ponto a melhorar é mesmo a oferta, que era bom se fosse um pouco maior, o espaço ainda aguenta mais umas estantes.
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Parece-me francamente mais interessante que vão surgindo livrarias deste género (como a Pó dos Livros, também recente, e a fantástica Letra Livre) do que propriamente os grandes supermercados do livro, impessoais e cheios de torres de best-sellers.

3.3.08

"Nas cidades, o conservadorismo é um pensamento precioso"

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Exemplar, a crónica de Clara Ferreira Alves no último Expresso, sobre o acto criminoso que é a anunciada destruição do Mercado do Bolhão, no Porto:
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O bolhão que se f...!
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EU GOSTO do Mercado do Bolhão, pedaço obrigatório do itinerário de qualquer campanha eleitoral. Apesar de todos irem lá mostrar os sorrisos às peixeiras do Bolhão, o Bolhão vai abaixo e as peixeiras que se f..., como diz uma delas. "E agora querem expulsar-nos daqui, f...-se!" Vamos lá ver, vamos lá ver se não. Se salvamos o Bolhão. As câmaras municipais, sobretudo as das grandes cidades, têm tendência para pensar que as cidades lhes pertencem e que se dobram aos seus desígnios. A participação dos cidadãos nas decisões de governo da cidade, e do governo dos bairros, é restrita e quase inexistente. A lassidão que entorpece os movimentos tem a ver com a mania de acharmos que compete ao estado resolver tudo e que nos limitamos a eleger funcionários políticos e a pagar impostos. Em Lisboa, é manifesto o desprezo dos lisboetas pela cidade, visível no modo como as ruas são tratadas como lixeira, cinzeiro do carro ou casa de banho canina. No modo como os parques e jardins são ignorados. No modo como os carros de fora da cidade invadiram a cidade e ocuparam todo o espaço disponível.
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Uma cidade tem de ser habitada e vivida por dentro e os mercados são uma parte histórica da vida das cidades. As cidades não podem ser dadas nem vendidas a quem dá mais, nem a troco de milhões e ideias de "progresso" podemos alienar património que é de todos. Em Lisboa, vimos o desfecho da história do Parque Mayer e do Casino da Expo, e dos milhões pagos pela Estoril-Sol que ninguém sabe muito bem onde andam e para que servem. Vimos como um edifício público foi vendido a privados depois de modificada a lei pelo Governo sem que a cidade beneficiasse. Perdeu-se um edifício e ganhou-se um casino. O Parque Mayer lá está, decrépito, sem Frank Ghery e com ervas daninhas.
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A lição do Parque Mayer e a da irresponsabilidade dos governantes não foi aprendida. No Porto, uma empresa holandesa propõe-se, com contrapartidas irrelevantes, um milhão de euros e um por cento dos lucros ao fim de 10 anos, ficar com a concessão do Bolhão por 50 anos e destruir todo o mercado deixando apenas a fachada, e "arrumando" os vendedores num andar como animais no zoológico, numa espécie de parque temático. Olhem e vejam o que era um mercado antigamente. O negócio é uma mina de oiro, lojas e habitação, estacionamentos, o costume. Mais um centro comercial onde já existem dois ou três, iluminados a luz branca, artificiais e clínicos, com as "franchises" do costume. Em Cascais, José Luís Judas decidiu tapar toda a frente marítima junto à estação de comboios instalando um mono na paisagem que é hoje um atentado civilizacional e patrimonial. Ninguém aprecia o mono, usam-no, apenas. Cascais, uma vila junto ao mar que podia e devia ter um mercado, ficou com mais um "shopping".
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Em Lisboa, os mercados vão também acabando, "reconvertidos". Veja-se a morte da Ribeira, que era um mercado belíssimo para ir de manhãzinha e uma tradição que devia ter sido preservada e recuperada. A Câmara devia ter gasto dinheiro a tentar fazer os que se fez em Barcelona com La Boquería e com outros mercados, revitalizando os pontos de venda, investindo na formação e nas estruturas, abrindo restaurantes e balcões de comida, ajudando à recuperação do mercado como ponto de encontro cívico e humano e lugar de felicidade. E onde seja possível comprar flores e produtos frescos e escapar ao mundo liofilizado do hipermercado. Na Praça do Príncipe Real, em Lisboa, funciona um pequeno mercado de produtos biológicos que é um sucesso, com pessoas que ali se encontram, abastecem, tomam café, lêem o jornal, almoçam, passeiam e trazem as crianças e os cães para brincar. São lugares como este que devem preocupar as câmaras, lugares ao ar livre, vivos e vividos, sem música engarrafada nem falsos passarinhos que pipilam nas árvores de plástico. Este é o modelo. La Boquería é um dos lugares mais visitados e desfrutados de Barcelona, e lembra um bazar do Oriente, aberto e simples, cheio de coisas para comer e beber. Os mercados ao ar livre do Cairo ou de Telavive, de Mumbai ou de Londres, existem para nos lembrar um modo de vida mediterrânico e oriental, autorizado pelo calor e o clima. E, mesmo num clima frio, os mercados resistem porque fazem parte da vida da cidade. A destruição das Halles, em Paris, para construir aquele deprimente e mal frequentado "shopping", foi um erro urbanístico e gerou arrependimento. Em compensação, no bairro do Marais, apostou-se no comércio em pequena escala e na gastronomia ao ar livre, nos cafés de passeio. Nas cidades, o conservadorismo é um pensamento precioso.
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Rui Rio tem governado até aqui como quis e muitas vezes contra a cidade. Se levar para a frente a sua intenção de se desfazer do Bolhão e assim autorizar a sua destruição, apesar do grande movimento cívico contrário, vai cometer o erro político da sua carreira. Pode ter a certeza de que a cidade perderá história e não ganhará progresso nem beleza. E a cidade não lhe perdoará. Terá o agradecimento da TramCroNe. Não chega. Com esta decisão, Rui Rio pode bem f...-se, com a devida licença e reticências. Tal como o Porto e o Bolhão.
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(foto tirada daqui)