. .Vítor Silva Tavares tornou-se quase uma lenda do mundo da edição de livros em Portugal, primeiro na Ulisseia e depois, desde há quase 35 anos, na &etc.
.
Faz hoje 70 anos de idade e deu ontem uma entrevista ao Público, que colocou no seu site uma versão alargada da mesma. Aqui fica:
.
RESISTÊNCIA É A PALAVRA
Entre o prego e 2007, as aventuras dão para uma conversa que não acaba, a que ele vai tendo com os próximos, sem pensar em escrever memórias. A sua escola de jornalismo, muito antes do “Diário de Lisboa”, é a do “Intransigente”, de Benguela, onde também foi inspector de cartas de condução sem saber conduzir e mudou os nomes todas da cidade numa noite de subversão, que lhe valeu ter um agente da PIDE à perna, de seu nome Delgado.
Partiu de Angola em risco de ser preso, deixando um 45 rotações de Mahalia Jackson a um contratado do interior que o levou para onde nunca mais terá sido ouvido.
De volta a Lisboa, distribuiu colaborações pelos jornais enquanto, ateu dos quatro costados, pintava Cristos que um “manager” vendia a conventos. Não sabe por onde andará essa extensa obra pictórica.
Depois convidaram-no a dirigir a editora Ulisseia, onde começou a publicar surrealistas portugueses, “nouveau roman” francês e obra de muita indignação para a censura. Os livros eram apreendidos, mas aparentemente a Ulisseia era mesmo para dar prejuízo ao dono, a Abel Pereira da Fonseca.
Gosta de coisas tão antigas como letras de tipografia e histórias a circular pela boca. De fazer coisas porque apetece, e porque tem de ser, e porque é assim. A porta aberta é para entrar e para sair, o importante é que esteja aberta.
Na & etc não há lucros e há livros quando houver. Tem havido regularmente, e cá estão eles a toda a volta deste subterrâneo com pátio de azulejo antigo e escadinha de ferro, ali onde o Bairro Alto cola com a Bica, muito lisboeta.
Tudo já aconteceu aqui, até quase um parto. Não há computadores e a secretária é a mesma que o senhorio ofereceu no dia em que o subterrâneo foi alugado. Vinha a calhar para este título, que começou por estar no primeiro livro de Vítor Silva Tavares publicado em Angola, “Hot & etc”, depois passou a ser um magazine do “Jornal do Fundão”, uma revista e enfim uma editora. Por ter começado como magazine é que Vítor Silva Tavares lhe chama sempre “o etc”, no masculino.
Hoje, centenas de livros diferentes, que parecem quadrados, e todos juntos são uma bela, longa, aventura.
Horas de conversa, em que ainda antes da primeira pergunta a jornalista abandonou o guião. A gravação começa com Vítor Silva Tavares a contar como começou a & etc.
.
.
.
Partimos da mais rigorosa e total independência, só tendo em cima de nós a vigilância censória, o que a censura cortava. Mas nós não cortávamos. Não havia censura interna, nenhuma. E não era, como agora se diz, “vamos ter um projecto”, não senhora. Entrámos a fazer o etc exactamente como uma aventura poética, interligando desde logo a intervenção artística, cultural, com as nossas próprias vidas. Viver poeticamente através de uma folheca, ou de livrinhos, mas viver a nossa própria vidinha.
Talvez isso nos ajudasse a dar algum sentido, alguma alegria a um país em absoluto pardacento que não apetecia. Hoje não sei se apetece muito, na altura não apetecia nada.
E, portanto, dúzia e meia de malucos atirámo-nos para isto.
E já colaboraram no etc, desde que ele nasceu, largas centenas de escritores, tradutores, pintores, ilustradores, que jamais tiraram daqui um cêntimo. A editora é totalmente independente. Nunca pediu nem à Secretaria de Estado da Cultura, nem às fundações, nada. Vive exclusivamente ou dos livrinhos que fazemos e pomos nas livrarias, e as tiragens são muito pequenas...
Entre 400 e 500?
Não!!! Menos! Ui! Isso era um “best seller”. A gente faz 300 e em casos excepcionais 350, nunca mais.
Não houve uma altura em que fazia entre 400 e 500?
Houve. Na parte dos senhores leitores houve também mutações. É preciso ver que, quando o etc arranca, o Maio de 68 está perto.
Está a referir-se ao & etc no “Jornal do Fundão”, para si esse é o princípio.
Sim, o etc arranca como um magazine do “Jornal do Fundão” [que tivera o seu suplemento de cultura censurado].
A ideia era esta: se o jornal reaparecer com uma folha que diz “Artes e Letras, Suplemento Cultural”, o que quer que seja, é um convite que estamos a fazer à censura para cortar “ab ovo” a intervenção cultural dentro do “Jornal do Fundão. Logo, vamos lateralizar a questão. Vamos chamar-lhe magazine, recuperando a velha ideia dos magazines, um bocadinho de cada coisa, o que já tem a ver com o nome. E aí há um cruzamento de coisas curiosas. Não íamos fazer um suplemento cultural académico, tal qual se faziam antes, um pouco de música, um pouco de cinema, um pouco de artes plásticas, o crítico tal debruça-se sobre não sei quê. Não era por aí que íamos, nem fomos.
Quando fala no plural está a falar de quem?
O “nós”, aqui, era sobretudo eu e o José Cardoso Pires. De início, “ab ovo”. A coisa nasceu assim. O António Paulouro [director do “Jornal do Fundão], o José Cardoso Pires e eu, que era uma espécie de homem de mão, colaborador assíduo do Zé. Escrevíamos coisas a quatro mãos, e etc.
Como conheceu o José Cardoso Pires?
Eu tinha vindo lá das Áfricas, em parte do jornalismo, no tal jornal “O Intransigente”, de Benguela, posto que tivesse outras profissões, fui para lá um aventureiro. E chego a Lisboa com a determinação, desse lá por onde desse, de nunca mais servir qualquer patrão ou fazer aquilo que não queria, de que não gostasse. Nunca mais. Disse o corvo e disse o Vítor. Pronto.
E regressei portanto para a minha função de pardal, que sou lisboeta tipo pardal. E para subsistir escrevia indistintamente ou contarelos para o “Diário Popular” ou pequenos textos para a “Crónica Feminina” ou crítica de cinema para a “Flama”, ou crítica de cinema para o então “Jornal de Letras e Artes”. E comecei a dizer “não” a uma quantidade de coisas. Empregos, por exemplo, publicidade: “jamais de la vie”. Não era comigo. E andava assim em pardal, saltitando daqui para acolá, palmilhando Lisboa como hoje – sou pedestre –, quando aparece uma proposta que era nem mais nem menos que ir dirigir a editora Ulisseia.
A Ulisseia!, que era a editora que eu, enquanto leitor, na altura ainda com algum dinheirito para comprar livros, mais apreciava, com direcção do Figueiredo Magalhães, que ainda é vivo. Grande editor. Não me deve chupar nem à lei da bala, porque eu é que fui suceder-lhe, digamos. Mal sabe ele a admiração que tinha por ele, e mal sabe ele que ao suceder-lhe não tive outro propósito senão garantir àquela editora o mesmo nível cultural, artístico que o velho Figueiredo Magalhães tinha dado.
Ora o José Cardoso Pires estava ligado à Ulisseia, que era a produtora dessa publicação “sui generis”, espantosa que foi o “Almanaque”, com o José Cardoso Pires.
Quando chego à Ulisseia, meti condições que não dá para acreditar, porque eu não acreditava nada que de repente trocava os cem paus, ou os noventa paus, que me pagava o “Diário Popular” por uma colaboração, e de repente estava à frente, como director editorial, de uma editora como a Ulisseia. Era demais. Então disse: “Só entro se...”
Como é que essa hipótese apareceu?
O Figueiredo Magalhães tinha saído, a Ulisseia tinha ficado sem cabeça, e tinha-se arrastado um determinado período, dependendendo de uma casa gráfica, a Casa Portuguesa, que executava os livros e atirava todo o passivo para a Ulisseia. Quem era o dono disso tudo? A Abel Pereira da Fonseca! Batatas, azeitinho, vinho a martelo! E alguém ligado à administração da Abel Pereira da Fonseca, conhecendo a irmã da Edite Soeiro [jornalista com quem VST trabalhara em Angola], perguntou: “Não haverá por aí alguém?”, e tal. E foi essa irmã, ou a própria Edite que disse: “Há um tipo que gosta muito de ler.” Disseram que eu tinha uma grande cultura literária, que também me interessava muito pelas artes plásticas. Naquela altura eu era um rapaz culto, e como tal capaz de estar à altura de – lá devem ter dito.
Foi em 1959 para Angola. Quantos anos ficou?
Três, que contaram para 30. Fui para lá ainda todo mocidade portuguesa. não haver racismo...
Portanto voltou a Portugal em 1962.
Sim, e [antes de aparecer o convite para a Ulisseia] ando por aí a distribuir colaborações, assim e assado. Tendo algum jeito para as pinturices tive um “manager” que estava ligado a uns conventos.
A uns conventos?
À padralhada. De modo que acabei por pintar a lápis de óleo e em tela ou cartão ou madeira uma quantidade de Cristos que o “manager” se encarregava de vender, e dar-me depois uns cobres, como o artista. De modo que eu distribuía-me entre literato, escrevendo para os jornais crónicas ou contos, mas também fazendo uma perninha nas artes plásticas, digamos assim. Eu que sou completamente ateu.
Eram umas trombas de um Cristo muito mal disposto, a sofrer muito, e os padres gostavam desse sofrimento.
Onde é que acabavam essas suas obras?
Nem sei onde é que está essa merda! Deve estar lá pelos conventos. Ainda fiz umas dúzias.
Conventos de alguma ordem específica?
Sim, sim, das ordens. Uma não sei de quê de Benfica.
Os Dominicanos?
Talvez, quem tratava disso não era eu, era o “manager”.
De modo que não acreditei [no convite para a direcção da Ulisseia, e fiz exigências]: separação completa da tal Casa Portuguesa, autonomia completa quer na Direcção Editorial quer na Direcção Administrativa, salário altíssimo... O convite foi em Outubro e já sabia que a editora estava tão mal que os donos não iam sequer pagar subsídio de Natal. Não senhor: “Não vai ninguém para a rua, senão não entro, e subsídio de Natal para toda a gente. E é pegar ou largar.”
A proposta devia ser de tal modo insólita, mesmo nessa altura, que o velho dono daquilo teve curiosidade em saber quem era o energúmeno. Vou ter com o homem, que seria dos mais ricos de Portugal...
O tal da Abel Pereira da Fonseca.
Sim senhora, de seu nome Manuel Correia — não sei se ainda é vivo —, que creio que nunca leu um livro, a não ser talvez o José Vilhena, e de teatro deve ter ido ver a Laura Alves. Homem já velho, de cabelo branco, acaba por ter comigo e com a Edite um tratamento como se fosse nosso pai ou nosso avô. Porque eu disse: “Mas eu lá de finanças, de organização, de coisas administrativas não percebo a ponta de um chavelho.” Para isso, estava a Edite, a sua disciplina, a sua capacidade de trabalho espantosa, e eu podia andar por aí. Também não me via como editor sentado, nem pensar. A Edite toda formiguinha e eu todo cigarra.
E assim foi.
O homem cumpriu totalmente. O único receio que ele tinha é que eu viesse a ser preso pela PIDE, dado que durante os dois, ou três ou quatro anos que lá estive nem faz ideia da quantidade de livros que publiquei e que a PIDE apreendeu.
O que é que publicou?
Ena pá! Fiz o gosto ao dedo. Fundei uma colecção muito bonita, ainda hoje gosto muito dela, Poesia e Ensaio. O Magalhães tinha a colecção dos sucessos literários, com os romances; tinha a colecção dos Documentos Sociológicos e Políticos; era a Ulisseia que publicava os livros da Pelikan. Mas não tinha Poesia e Ensaio. E até nessa colecção houve logo livros apreendidos. Desde “Feira Cabisbaixa” do Alexandre O’Neill a uma antologia da poesia portuguesa do pós-Guerra, até casos mais graves. Fui eu que publiquei os “Condenados da Terra”, do Frantz Fanon, e tínhamos a guerra colonial. Esse livro servia de bíblia aos guerrilheiros ditos terroristas.
Mas o Manuel Correia nunca demontrou qualquer problema pelos livros todos que eram retirados. Não lhe interessava. Se calhar a Ulisseia até seria uma desnatadeira, sei lá.
Uma desnatadeira?
Há certas editoras ligadas a empresas muito fortes noutros campos e onde as literaturas servem para desnatar lucros. Para dar prejuízo. Há editoras a que interessa dar prejuízo. Se houver fusão de empresas, uma grande empresa com lucros hiperbólicos pode sempre desnatar através de uma editora onde à partida já não se põem grandes expectativas. É uma questão de operações contabilísticas. Desnata-se, ou descai-se. E até se pode ganhar alguma coisa em sede de IRC. Não percebo muito de finanças mas é à volta disto.
Seria um tanto enigmático porque é que a Abel Pereira da Fonseca tão interessada em vender grão de bico, vinho, azeite e batatas do Val do Rio era tão indiferente ao sucesso ou insucesso económico da editora. E era. O que me punha completamente à vontade. Começo a publicar cá, por exemplo, os autores do “nouveau roman”, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Robert Pinget, com “O Garoto” — se aquilo vendeu 20 exemplares, deve ter sido um “best seller” do caraças. Ou quando começo a chamar os surrealistas portugueses. Quem é que os publicava? Ninguém. Sou eu que vou publicar o primeiro livro do Luiz Pacheco, “Crítica de Circunstância”. E trás, cai lá a PIDE, pumba, o livro é apreendido.
Nas traduções, quem tinha?
Ia desde a Luiza Neto Jorge, só vendo livro a livro.
Já tinha o Manuel João Gomes?
Não. O Manuel João Gomes entra quando a Luiza conhece o Manuel João Gomes, que era muito bonito. Ela, Luiza, teve sempre uma pontaria muito grande para os seus homens, sim senhora. Aquele olhinho azul, aquilo era um olhinho certeiro. Aí, já estou no etc do Fundão. Tanto assim que sou eu que publico o primeiro texto do Manuel João Gomes. Ela apresenta-me ao menino, que parecia o Che Guevara, um misto de Cristo e Che Guevara, estava cá como relapso à tropa.
Cá?
Em Lisboa, porque ele não era de Lisboa. Tinha andado lá pelos seminários e desagua em Lisboa, refractário à tropa em tempo de guerra colonial, passando todo o tempo até ao 25 de Abril em clandestinidade aqui na Rua da Misericórdia, casa da Luiza.
Veio ao Coliseu uma companhia de circo russa, e o Manuel João Gomes escreve para o “Jornal do Fundão” um texto chamado “Alice no País dos Sovietes” – já havia nessa altura um grande interesse dele pelo Lewis Carroll. A censura cortou um bocadinho mas não o suficiente para eu não publicar. E começa aí uma colaboração muito íntima que se prolonga depois para o “Diário de Lisboa”, e para a aventura do etc. Ele foi, sem dúvida, o meu braço esquerdo, o meu braço direito.Nunca encontrei um melhor colaborador que o Manuel João, sob todos os aspectos. Como eu tinha uma grande ligação de amizade e admiração pela Luiza.
Aqui dentro do buraco, e isso hoje ainda se mantém, temos um tal tipo de ligações de ordem humana, de admiração, poéticas, que isso em parte explica que uma casa que não tem estruturas nenhumas, mas tem esta, e de tão longa duração, para o ano vá fazer 35 anos sem se ter desviado um milímetro que fosse da mesma maneira de estar dentro destas coisas.
Voltando ao que publicava na Ulisseia.
Raymond Queneau. O grupo da Mary McCarthy, na altura o primeiro livro de apologia do feminismo em Portugal, não sei se a PIDE o retirou. O Cesariny, claro, com “A Intervenção Surrealista”, e esse lindo livro que foi “A Cidade Queimada”, feito à mão, folhinha a folhinha, com os desenhos do Cruzeiro Seixas.
Voltando ao José Cardoso Pires, pois bem, entro para a Ulisseia, sendo eu admirador da editora do “Almanaque” e dele enquanto escritor – já tinha lido “O Anjo Ancorado”, “Os Caminheiros e Outros Contos” – e eu queria publicar a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, porque só havia uma muito bonita com edição do Adolfo Casais Monteiro, mas de certo luxo, esgotada há muito tempo. Eu tinha uma enorme admiração pelo Fernão Mendes Pinto, pelo lado aventureiro, e de quem me lembro para uma nova actualização de texto ou a apresentação? Do Pires. E entro em contacto com ele. Levei tampa, o homem tinha mais que fazer. Mas estabeleceu-se uma tal empatia, talvez também pelo meu linguajar. O Cardoso Pires era um lisboeta de adopção, adorador de Lisboa, e eu sou lisboeta da Madragoa. Por vezes a minha linguagem está ainda muito salgada.
Em que rua mora?
Rua das Madres. Toda a minha família estava ligada ao mar e ao rio. O meu bisavô materno, pescador, tinha o seu bote, o pai dele tinha vindo de Olhão, era gente lá dos Algarves. E com os outros homens – que tinham os botes e passavam o pessoal do trabalho de um lado para o outro do rio, isto quando não havia ainda cacilheiros – vai formar a Cooperativa dos Catraeiros, que em conjunto compra o primeiro cacilheiro. O meu tio-avô, filho dele, portanto, foi um dos primeiros mestres dos cacilheiros. Eu era puto.
Isso, no princípio dos anos 40.
Pr’aí. Ele a guiar e eu ao lado, ainda nem sabia quem era o Vasco da Gama, mas se soubesse ia de certeza ao lado do Vasco da Gama.
Depois, a minha pobre mãe também trabalhava como carne para canhão do lado de lá, quer nas fábricas das anchovas, num sítio chamado Olho de Boi, quer nas chamadas fábricas dos gelos, estão ainda lá os armazéns. Muitas vezes eu fazia pressão para ir com ela. Nasci em condições de muita miséria naquela casa. Fui o décimo terceiro. Parece impossível como estavam lá 12 pessoas quando eu nasci, mas estavam. Gostei muito do Pacheco e da “Comunidade”, na “Crítica de Circunstância”, por haver certos paralelismos. Lá estava a filharada do Pacheco a dormir nas gavetas da cómoda, ou em cima do papel, porque o papel é um bom condutor do calor, quando eu também, no meio do chão, no linóleo, estava ali rodeado de mãe, avó e tias.
As condições em que nasci e cresci eram tão dramáticas que isso podia ter, e de que maneira, retorcido completamente a minha psique, a minha pessoa. Isso não se deu porque fui tão protegido, gostado, apalpado, acarinhado, tão com-todos, que a minha mãe deixava-me indistintamente em casa de A. e da mulher do sapateiro.
A minha avô ia comigo à sopa dos pobres, ali aquele edifício em frente ao Parlamento buscar a sopa e o pão escuro que muitas vezes era a base da alimentação. E há um pormenor completamente surrealista. Na casa onde ainda hoje vivo só há um objecto do que era a casa velha. É um relógio de cavalinho. Está lá na parede. É um daqueles relógios que parecem uma pequena catedral que tem um cavalinho por cima. Uma peça muito bonita que faz um cagarim doido ao tocar. Toda a gente olha para ali e diz: “É um relógio.” E eu digo: “Não senhora.” Como tenho esta costela surrealista, digo: “Aquilo que ali está na parede é uma panela de sopa.” “Uma panela de sopa?” “Tal e qual.” Porquê? Como era o único bem que havia naquela casa, o sacana do relógio semana-sim-semana-não estava no prego, que ficava na Rua da Esperança. Lá ia o relógio para o prego e nessa noite havia sopa de hortaliça com chouriço de sangue. Era uma festa. O relógio servia para isso.
A minha mãe ficou muito marcada pela memória dessa extrema miséria, porque não me pôde dar o apoio que as mães gostam de dar aos filhos.
A minha avó Arminda, por quem tenho total devoção, tinha como alcunha na Madragoa a Viúva Alegre. Acontece que a minha avó nunca casou. E era amiga íntima de uma outra chamada Rosa das Sardinhas, avó do Henrique Viana. A minha avó fazia tudo, Cantava o fado com um irmão pelas tabernas, empalhava cadeiras, cosia as velas das fragatas no Largo Vitorino Damásio... havia lá uma casa com um grande passeio em frente, onde o mulherame de gatas cozia com umas agulhas de osso e corda muito forte os remendos das fragatas... e também lavava a roupa para as vizinhas no lavadouro que ainda existe ao cimo da Travessa do Pasteleiro. É Zola. Eu saía de casa, de pé descalço, claro...
Que idade tinha a primeira vez que calçou sapatos?
Quando fui para a escola. Mas foi um problema. Sentir o pé apertado num sapato foi uma coisa terrível. Lá ia eu ter ao lavadouro sabendo que a minha avó lá estava. A minha mãe estava a trabalhar sempre noutros sítios. E então à porta do lavadouro eu gritava: “Ó Vó!” E aquele mulherame todo: “Ó Arminda, o teu neto!” E eu ia pelo ar, entre muitas beijocas, de braços em braços, zuca-zuca-zuca, até desabar no colo amplo, ancho, da minha avó, que me dava logo muitos chochos na cabeça. Muito magrinho, como sou hoje, com medo que também eu morresse, por raquitismo, subnutrição, etc.
O meu pai era trabalhador estudante e já estava a fazer as viagens dos lucros bacalhoeiros, de seis meses, no mínimo. Ia para a Gronelândia e para a Terra Nova. Logo, eu só via o meu pai de seis em seis meses. E quando começou a fazer as carreiras da Europa e da América, de três em três meses. Era sempre um pai muito distante. Eu fui criado pela família da minha mãe.
O que é que o seu pai fazia? Andava na pesca?
Não, era estudante de máquinas, e foi tirando as cadeiras até terminar a sua carreira no mar como primeiro oficial maquinista. Depois ficou em terra e foi para a Sorefame como técnico. Um “gentleman”, olhinho muito azul, bigodinho à Errol Flynn, muito namoradeiro, casado com uma Anna Magnani, que era a minha mãe, de uma frontalidade a toda a prova, um ser inteiro, sem diplomacia e de uma rectidão total, a chamada mulher de armas. Violenta e com uma relação terrível com o meu pai, terrível do género facalhão ou mesmo um machado para lhe dar cabo da cabeça.
Por causa desse lado namoradeiro?
E porque o meu pai era muito fantasioso, para não dizer aldrabão, embora encantador. Muito bonito. E a minha mãe também. E era ela que aguentava com todo este peso, este martírio.
Eu não quis entrar para a escola, para mim era uma prisão. Tudo aquilo me metia terror. Rapaz da rua, de repente sou enfiado dentro de uma escola. Para mais, muito chique, pelo seguinte: como os meus pais eram muito novos, não eram casados quando nasci. Logo fui filho ilegítimo e como tal, quando chegou à altura de entrar para a escola, não fui aceite nas oficiais porque era ilegítimo. Então a minha mãe teve que arranjar uma escola que havia na Rua da Lapa de duas velhotas republicanas que faziam uma grande selecção, mas apiedaram-se do meu caso e aceitaram-me.
De modo que os seus colegas eram os meninos da Lapa.
Os meninos bem. E eu tenho uma quarta classe em absoluto excepcional. O meu gosto pelas literaturas vem daí. Pela simples razão que as velhotas já nos liam na aula Gomes Leal, Guerra Junqueiro...
Isso hoje é impensável.
Ainda sei de memória. Liam certos poemas de Gomes Leal, ou do Augusto Cid, e eu gostava muito. Ou do Guerra Junqueiro. “A Lágrima”, ai “A Lágrima”. E “O Melro”. “O melro, eu conheci-o”...
Mas o seu pai tinha livros, não?
Sim, o meu pai era mais culto. Quando aprendi a ler e finalmente foi possível alugar-se uma pequena casa na esquina do Rua do Meio com a Rua da Lapa, num prédio que já foi abaixo – a casa era tão pequenina que o meu pai, que tinha muito jeito de mãos, teve de fazer um beliche como nos barcos [para Vítor e o irmão que entretanto nasceu] –, passei a ser um devorador compulsivo de tudo o que era letra, desde cartazes de rua à necrologia dos jornais, e portanto devorei aquela livralhada toda [do pai], e que oscilava desde os livros do Hall Caine ao Blasco Ibañez, Stefan Zweig e os portugueses do Primeiro Realismo, Aquilino, mas também Assis Esperança, Leão Penedo, literatura de carácter mais social.
Zola também?
O “Germinal”. Quando mais tarde tive a minha primeira namorada, ela foi trabalhar para a livraria Barateira. E apetece-me dizer que li a Barateira toda por interposta namorada, isto provocando uma baralhada doida na cabeça. Um acumulador de literatura, lendo tão selvaticamente e coisas tão separadas.
Sim senhora, tirei uma quarta classe excepcional, e entro para o Pedro Nunes, que era o liceu da nata, com 18 vírgula qualquer coisa, o que deu lugar a ser chefe de turma e ir para o quadro de honra. Posto que os meus pais não tivessem dinheiro para eu estar no liceu, erro fatal. No liceu fartei-me de roubar tudo. Roubei a prancheta, os livros, tudo. Vim a ser expulso por indisciplina grave que envolveu agressão a um professor. Aquilo era um liceu fascista, embora lá estivesse também gente como o Jorge Sampaio, e alguns professores de grande qualidade, como Rómulo Carvalho, que não foi meu professor. Não tenho tendência natural de violência, de agressão, não trato mal ninguém. Mas por outro lado venho de onde venho, a minha era uma cultura de rua com a violência própria dos miúdos. De qualquer modo, eu estava ali transplantado para um universo que não era o meu. E não esquecer que já ia embalado com um tipo de leituras que cada vez mais acentuavam em mim a consciência da injustiça social. Eu lia escritores como o Ferreira de Castro e chorava de uma maneira doida, crescia dentro de mim uma revolta enorme, que nunca me passou. Só está atenuada, plasmada dentro do meu ser. É marcante para a vida.
Primeiro dia em que entro para o liceu. Dia solene. A minha mãe lá faz um esforço e compra-me uma malazita de cartão para meter lá o livro. Roupinha nova, penteou-me, risquinho ao lado e lá vou eu, em estado de terror, para o pátio. Talvez pela maneira como estava vestido, um puto qualquer começou a embirrar comigo. Dá-me uma palmada na pasta, que cai ao chão e como era de cartão, ficou amolgada. Eu disse: “Epá, tá quieto.” E o sacana, pás, outro murro na mala, que cai outra vez para o chão. E eu disse: “À terceira, levas.” Ele não acreditou. Foi o mal dele. Porque de onde eu vinha não se faziam ameças. Eu fiz um aviso. Deita-me outra vez a mala para o chão, e aí em um quarto de segundo já eu tinha o meu punho muito magrinho de cima para baixo na cana do nariz, tipo coice, que é infalível – o sangue espicha imediatamente e um gajo cai redondo, logo, que foi o que aconteceu. Um certo alarido e toca a sineta, para eu ir para a primeira aula. Não é que o gajo era da minha turma? Entra naquele lindo estado cheio de lenços, cheio de sangue. O professor pergunta-lhe o que foi e o cabrão diz: “Foi aquele menino.” E o professor para mim: “Entras bem.” Mais tarde, esse tipo foi para o jornalismo e para a extrema direita. Foi para o “Diário da Manhã.”
Portanto, houve ali um erro. Dado que tive uma muito boa quarta classe, a minha mãe teve a ambição natural de que eu saísse doutor e viesse a ter um bom emprego. Só que ela não tinha meios para isso.
E depois aconteceu aquilo da agressão, que foi mais por indignação pelo que o sacana do professor tinha feito a outro aluno que por minha causa. Eu era um bocado impulsivo, tinha a quem sair. E tanto assim, por ter a quem sair, o episódio da expulsão foi engraçado. A certa altura o reitor, fascista, manda lá chamar a minha mãe. E disse-lhe que ou ela me metia num reformatório, porque eu já não ia lá de outra maneira, ou então talvez uma carga de pau pudesse solucionar a questão. Recebeu como resposta o seguinte: “Se eu tivesse aqui um pau a si é que eu lho enfiava na cabeça.” Ela que sendo tão violenta nunca me bateu.
Portanto deixa o liceu.
E vou trabalhar para uma casa no Areeiro, onde estão agora As Chaves do Areeiro, que fazia uns acessórios para automóveis. Cono tinha muito jeito de mãos puseram-me a fazer em gesso uns moldes aerodinâmicos, cinematográficos. Ah, porque a minha cultura começa a ser cinematográfica. Tive tantos dias de expulsão e castigo no liceu que passava o tempo a ir para o Paris ou para o Jardim Cinema ver filmes. Até entrei para o Cineclube Imagem, que era vermelho, e tinha lá dentro o Vasco Granja, o Henrique Espírito-Santo, o José Fonseca e Costa. E houve uma altura, até, em que a PIDE prendeu a direcção toda do Cineclube Imagem.
Foi para mim uma autêntica escola, não só de cinema, mas também daquilo em que o cinema, como qualquer outra das artes, deve ter a sua função política. Isto em tempos já muito politizados. Por leituras, e depois pelo cinema, e por estes contactos, comecei a ser aquilo a que hoje se chama uma pessoa de esquerda.
Sem nunca ter pertencido ao PCP, não deixei de ser aliciado pelo PCP, e de qualquer modo era um ponto de referência, sempre. E nessas relações no decorrer da vida, nas Áfricas, quando regresso, a dirigir a Ulisseia, depois no etc do Fundão, no “Diário de Lisboa”, é natural que tivesse sofrido, nomeadamente no “Diário de Lisboa”, pressões que não vinham apenas da censura.
Muitas vezes voto no PCP e não é por causa do PCP, é por causa de mim. O que tenho a ver com o PCP? Nada. Gosto de ir votar porque a junta de freguesia é ali na Rua da Esperança, e vota-se ao domingo, e ao domingo aquilo é uma aldeia. Até os cavalheiros podem aparecer de chapéu, porque é quase tudo emigrantes, de Ovar, daqui e dacolá. Põem os seus melhores fatinhos, as esposas ou viúvas também, e é-me ternurento ver como aquela gente vai tão respeitosamente votar. Então, eu gosto de ver aquilo e também vou.
Isso explica por que vai votar....
Como vê, não é por causa da democracia.
Mas porque é que vota no PCP?
Sou totalmente fiel à minha condição. Não tenho qualquer ilusão sobre de onde venho, como fui sendo e agindo. E sou de tal modo fiel a isso e a convicções iniciais nunca perdidas, que posso não me interessar em particular pelo partido comunista, mas por certas ideias comunistas, mesmo aquelas que passaram primeiro pelos Bakunines, ou pelos comunistas utópicos, como o Charles Fourier, com o falanstério. Eu venho dessa família de socialistas idealistas, onde meto um certo comunismo inicial que nada tem a ver com o Estaline, se calhar nem com a revolução de Outubro, sabendo-se que a revolução de Outubro começou por assassinar os de facto socialistas, revolucionários.
Está mais próximo da minha condição e formação enquanto pessoa.
Isto tem que ver com as ideias e a minha integração num sítio.
A minha Lisboa é muito pequena. Falo dela como o meu Triângulo das Bermudas. A casa da Rua das Madres onde vejo, enquanto os arquitectos deixarem, a mesma nesga de rio que via quando era miúdo. Parece que o Norman Foster vai dar cabo disto. O tal muro de betão que uma certa Lisboa pôde fazer parar há meia dúzia de anos vai ser transferido simplesmente para o outro lado da 24 de Julho.
Aquilo é uma pequena aldeia, eu de manhã vou tomar o meu cafezinho ao mais pequeno estabelecimento do mundo, que é a Geninha, tenho lá a voz do bairro, o mulherame todo, sei logo tudo. Aquele português que lá se fala é do melhor Gil Vicente, nomeadamente as mulheres, e eu delicio-me. Reencontro aí uma língua portuguesa que é escusado estar a ler a Agustina.
Depois faço a Calçada do Combro a pé e estou na Lisboa do Chiado romântico, onde sempre trabalhei.
Isto [o subterrâneo da Rua da Emenda onde fica a & etc] ainda é Bairro Alto?
Ainda. Está confinando com a Bica, mas ainda é Bairro Alto. Andei sempre no Bairro Alto, o “Diário de Lisboa” era no Bairro Alto, a Ulisseia era no Bairro Alto. Portanto, andei sempre por aqui. E depois trabalho na Rua da Alegria, e ao pé da Mãe d’Água – olhe que nome lindo – onde começou o etc. Na velha tipografia Minerva que faz o Borda d’Água. Ora essa tipografia tem gatos, tem nespereira, porque está encostadinha ao Jardim Botânico, tem as mulherzinhas que fazem para mim as encadernações à mão, com faquinha de marfim, e eu aí estou em família, em casa. O meu circuito básico é este. Quando vou ali ao Saldanha costumo dizer que vou ao estrangeiro.
Infelizmente a Madragoa agora está sendo atacada pelos novos bárbaros. Nunca ali houve problemas de racismo, não por acaso estamos à beira da Poço dos Negros, sempre foi ali naquela zona, desde a gesta dos Descobrimentos, que tivemos íntima convivência com os pretos, ainda hoje negros de Cabo Verde, Angola, Moçambique moram ali, estão perfeitamente integrados. E os novos bárbaros vêm de não se sabe onde com os seus carros, tudo motorizado, claro, e vão para aqueles bares da D. Carlos I, da Marquês de Abrantes, das Janelas Verdes.
De qualquer modo, moro no miolo, e não se ouve nada. E podemos usufruir de um bem inestimável, que não podíamos ter em Espanha, na Inglaterra, nos States. É que nós, com todos os problemos que temos, vivemos em paz social. E se formos capazes de reflectir nisto, sem o pesadelo dos fascismos, sem essas nódoas, podemos na nossa cidade ter momentos de prazer de vida.
Porque usufruimos desse bem inestimável que é a paz social. Se quisermos, a maior conquista de Abril são as dosagens de liberdade que cada um pode conquistar e fruir com outréns.
A editora tem a idade da revolução. Como é que deste subterrâneo olha para o país que temos agora?
Nos primeiros tempos após o 25 de Abril, vivemos com muita emoção, paixão, subjectivismo, mas foi como que um alívio colectivo, como se o ar de repente fosse inoculado de oxigénio. De repente houve oxigénio. Outra maneira de estarmos nas ruas, de falarmos uns com os outros. Houve uma euforia. A liberdade foi afrodisíaca, embebedou, fez nascer muita criançada, por já se poder nascer em liberdade. Esteve para nascer aqui um filhinho do Jorge Fallorca. Não chegou a nascer por 24 horas. Eu tinha ali um divãzinho [aponta para trás das estantes de metal].
É verdade. Já não tem?
Não. O espaço foi necessário. Mas esse divã foi porreiro. Depois do 25 de Abril, como isto foi sempre uma porta aberta – aberta para quem entra e para quem sai –, havia muitas chaves espalhadas. Uma certa manhã entro aqui e vejo um escandinavo pr’aí com dois metros de altura, todo nu, muito sorridente, a dizer-me: “Bom dia.” Atravessou e foi para o pátio – há ali uma mangueira – tomar banho.
Desde quando está aqui?
Praticamente desde o 25 de Abril. Na Mãe d’Água eu subalugava meia salinha com um senhor inventor de uma chave magnética através da qual ia ganhar fortunas, porque só lá na China ia vender biliões. Como nunca vendeu nem uma é claro que o homem faliu e a certa altura já nem tinha dinheiro para pagar a metade dele.
Começo anúncios ver nos jornais. E um dia, até foi o Paulo da Costa Domingos que viu um anúncio que dizia: um determinado espaço para escritório ou armazém ao Camões, dois contos e quinhentos. Era o que eu já estava pagar. E telefonei. Os donos disto eram os Carvalhos da Silva, da Associação dos Proprietários Lisbonenses. E o senhor diz que é um espaço que ficou vago porque umas senhoras que se serviam dele para depósito e até exposição de móveis antigos, proprietárias daquele antiquário muito fino em frente à estátua do Eça, quando veio o 25 de Abril, vá lá saber-se porquê, resolveram ir tomar banho para Copacabana...
Cheguei aqui,vi umas coisas ao rés-da-rua e disse: bom, se calhar é ali em baixo, deve ser uma coisa medonha. Como o encontro era no terceiro andar, na sede, subi, e lá estava o Carvalho da Silva, proprietário dos proprietários. Fui com o Paulo e a namorada do Paulo. Nessa altura o Paulo tinha uma cabeleira deste tamanho [abre os braços], se não me engano encarnada, e a namorada uma cabeleira deste tamanho [estica os braços] e azul, vamos supor. Parecia o circo Chen a entrar por ali dentro, para o homem que estava, claro, numa secretária de torcidos e tremidos. Eu disse: “Sabe, nós somos artistas, intelectuais, umas revistas de cultura.” “Ah, sim senhor, cultura.” “E da boa.” Desato a falar com o homem. “Mas não quer ir ali abaixo ver?” E vejo um pequeno teatrinho, o patiozinho, a portinha. Isto encantou-me. Disse: “Vamos já fazer o contrato.” E ele: “Já têm armários, mesas, cadeiras?” Então, esta secretária foi dada logo no primeiro dia pelo senhorio, que não só deu a secretária como andou comigo com ela às costas do terceiro andar cá para baixo. Portanto, óptimas relações com o senhorio, que depois do 25 de Abril até era do CDS. Ele no CDS a fazer propaganda ali no Chiado, eu passo. “A si não lhe dou”, diz ele. “Não dá? Faça favor, ponha já aqui o autocolante.” Pás, autocolante do CDS na lapela do meu casaco. Viro a outra lapela: MRPP, PCP, e tal. “Está a ver, entre nós os dois o verdadeiro democrata sou eu.”
E agora quem são os senhorios?
É o irmão, com quem me dou muito bem também.
Quanto paga de renda?
O etc aguenta-se desta maneira porque os gastos são poucos. Uma renda que anda por volta dos 40 e tal contos. Não tenho, como vê, computadores, nada disso, porque não preciso. Com as pessoas com quem trabalho as relações são sempre muito pessoais. O Olímpio [Ferreira] é quem trabalha com os computadores, compõe os livros, trabalha comigo nas capas. Pagamos a luz, que não é muita, o telefone fixo e impostos.
Não há salário nenhum?
Ninguém tem salário. Tudo quanto tenho, porque comecei a trabalhar muito cedo – antes de ir para África, trabalhava numa grande casa de material cirúrgico, e como era o mais puto enfiaram-me como estabalecimentos a Cadeia Penitenciária de Lisboa, os Hospitais Psiquiátricos, Júlio de Matos e Miguel Bombarda e a Ortopedia de São José... –, mercê dos pagamentos à segurança social hoje usufruo de uma pensão de 250 euros. A casa onde vivo é minha, sou apoiado, como sempre fui desde miúdo. E é por causa destas circunstâncias materiais que o etc se pode dar ao luxo de ser um luxo. De poder continuar a funcionar completamente à margem da engrenagem das indústrias e comércios editoriais. O etc não percisa de “marketing”, porque quem faz 300 livros não precisa de “marketing”.
Ao profissionais propriamente ditos, pago sim senhor, pago religiosamente a tipografia, não tenho uma dívida à praça,. Não devo um tostão ao banco. O meu banco é a tipografia Minerva. Porque se eu disser: “Ó senhor Gomes, faça-me mil livros”, ele faz. Ou: “São cinco livros”, e ele faz. Porque sabe de ciência certa e cega que o senhor Vítor jamais deixaria de pagar um cêntimo àquela casa. Portanto esse trabalho é pago, claro.
Ao fim e ao cabo os autores que para aqui mandam os seus originais, também os mandam porque sabem que seria um horror se graças ao trabalho artístico ou intelectual estivesse eu com o meu popó graças ao trabalho deles. Eles sabem de ciência certa que não é isso. O projecto do etc não passou desde o início por irmos fazer lucro. E sempre foi dito que no caso de termos algum lucrozito era para meter num novo livrito, e assim sempre.
E a lógica é com o que um livro vende fazer outro.
Sem dúvida que vai auxiliar ao “desastre” que vai ser o outro. Porque se publico pela primeira vez um autor que não é puto conhecido já sei que dificilmente a gente vai vender 200 livros. E se vendermos 200 é porque já aqui estamos há tantos anos que de qualquer modo já houve um pequeno público habituado, ou porque gosta do livrinho, ou de os ter todos, ou porque as capas são muito bonitas, ou porque acham que a casa tem algum rigor. Mas algumas vezes, muitas vezes, esses livritos não chegavam para pagar à tipografia. Os autores em geral não gostam de saber destas coisas, nem eu vou dizer a um autor: “Oiça lá, foi um buraco de todo o tamanho.” Deu prejuízo? Já sei que vai dar. Mesmo assim faço. Por coerência. Estou dentro de uma engrenagem que tudo faz para abafar, para fazer desaparecer de vez aventuras desta natureza. Enquanto puder hei-de resistir. Como? Desta maneira. Do ponto de vista pessoal sou um indivíduo baratíssimo desde miúdo. Sei comprar a minha comida, sei fazê-la.
Os seus carapaus.
É uma metáfora. Sendo os meus pais muito miúdos, quando o meu pai já está a fazer as carreiras da Europa, o navio aportava a Alcântara ou a Santos e ficava uma semana em carga e descarga, ia depois para Leixões e podia lá ficar uma semana. Por vezes a minha mãe para poder estar mais tempos com o meu pai acompanhava-o a Leixões, e já tínhamos a guerra, as tais senhas de racionamento, e industriou-me não só a ir à mercaria, à peixaria, ao talho, à padaria, com as tais senhas, como a fazer a minha comida, melhor, quando nasceu o meu irmão, fazer para mim e para ele. E a minha mãe podia ir sossegada. Logo, faço cozinha desde os cinco, seis, sete anos. Não tendo eu vícios excessivos, a não ser o tabaco...
Quantos cigarros fuma por dia?
Um maço e meio. Indo ao cinema de 15 em 15 dias, ou uma vez por semana , porque gosto muito de cinema, tenho com a minha companheira, que trabalha no aeroporto, um tipo de vida muito estreito do ponto de vista económico, mas com muito conforto. Comemos muito bem lá em casa, as coisas são bem escolhidas, cozinho bem, logo ninguém pode ouvir da minha boca qualquer queixume, coitadinho de mim que sou tão pobrezinho. Não me importo nada de ser pobre. Não trocava a minha posição de modo algum com o Belmiro ou o Berardo. Tenho pena deles. Se o Berardo ou o Belmiro perderem 25 tostões, ou dois euros e meio nessa noite eles não dormem. Ai eu durmo regaladamente.
Do que tenho um bocadinho de pena, e por isso, evito, é ir a certas livrarias. Poderia ter a tentação deste ou daquele livrito, Evito e custa-me evitar. Eu que faço livros não tenho dinheiro para comprar livros. Mas tirando isso, não me custa nada viver como vivo.
Não lhe custa não viajar?
Agora não. Viajei, sim senhora, até ao 25 de Abril. Veio o 25 de Abril, fartei-me de viajar por Portugal.
Foi para Angola aos 22 anos. Tinha a ideia de fazer documentários. Isso do cinema documental vinha de onde?
Foi uma soma de coisas. A tal minha primeira namorada vai para o Conservatório, e eu venho a conhecer o doutor Fernando Amado.
Diz sempre doutor Fernando Amado.
Digo. Tive sempre por aquele homem uma devoção extraordinária. Eu não tive universidade e sem dúvida que este homem foi um dos meus mestres. E mestre não quer dizer professor. Ele foi meu mestre porque me pôs a mim a saber. Não foi ele que me ensinou. Pôs-me em estado de saber. Por isso, mestre. Fui eu que o adoptei como tal. Um sábio gentil.
Começo com os meus encantamentos de teatro, comprei a prestações o primeiro livro que cá chegou, tradução da “Formação do Actor” de Constantino Stanislavski. E como já era muito lido, um intelectual, perorava ali na Orion, e tinha então conversas muito mais aprofundadas com o doutor Amado. Tive uma paixão por aquele teatro de amador, que eu sou um amador. Já trabalho há tantos anos, sei fazer o trabalho, do ponto de vista profissional, mas na essência sou um diletante, um amador. É por isso que nem gosto que me chamem editor. Posso fazer tanta coisa, não sou corporativo, nunca fui, calhou dedicar-me mais para aqui, podia ter ido para outro lado. Toquei muitos instrumentos, um deles foi o teatro, mais o cinema.
Ora eu tinha um grande amigo que se suicidou lá em Angola, era filho de gente rica de Benguela. E eu, mais alguns rapazes e raparigas do Conservatório, metemos na cabeça que íamos. Primeiro ia eu, tipo pisteiro, lá ter com ele, para podermos fazer um grupo de teatro itinerante pelos vastos espaços angolanos. A somar ao seguinte: comprando-se uma câmara Paillard de 16 milímetros eu podia fazer um levantamento etnográfico, etnológico e tudo o mais.
Quando é que conheceu o Ruy Duarte de Carvalho?
Mercê dessa estadia, que foi muito intensa. Acabo por o conhecer aqui mas por intermédio do Aníbal Fernandes que conheci lá. O Aníbal estava primeiro no Lobito e depois em Luanda, e eu fui sempre o homem do sul. Já tinha barba e era vermelho, e portanto tinha a alcunha de Fidel porque quando vou em 1959 temos a Sierra Maestra, temos os barbudos. E eu apareci como barbudo em Benguela, nem faz ideia.
Aquilo tudo faliu, não houve dinheiro para a Paillard, embora acabasse por fazer lá um filme em oito milímetros num sítio lindo chamado Caota, “Uma História do Mar”.
Onde está esse filme?
Não faço a mínima ideia. Apostava que tivesse ido parar ao governo angolano.
Em Angola ganhei algum nome no activismo jornalístico-político. Entrei todo Mocidade Portuguesa e saí todo Amílcar Cabral.
Porque é que diz que entrou todo Mocidade Portuguesa?
Eu fui da Mocidade Portuguesa. Era obrigatório. Mas eu fui mais. A Casa da Mocidade era na Rua do Quelhas [que sobe da Madragoa para a Lapa]. Quando se aproximava o Verão, os dirigentes da Mocidade andavam ali pelo bairro a recrutar rapaziada dizendo assim às mães: venham ver as instalações. Eram magníficas, tinham piscina e tudo. E a cozinha, a alimentação, frangos, bifes. As mães ficavam assim: “Quanto custa?” “Nada.” “Nada?!” E para o que era sempre um problema das mães naqueles meses de Verão – onde pôr a rapaziada, que só podia estar fatalmente ali na rua –era um sítio porreiro. Toca a levar a criançada. A minha mãe vai ver aquilo e sai de lá maravilhada. Às duas por três vejo-me encostado a um muro com um tipo a tirar fotografias, e fico lá dentro esses meses que serviam para a formação dos graduados. Saio de lá graduado, comandante de castelo. Aquilo tinha uma parte de instrução quase pré-militar, num quartel da guarda nacional republicana, que no meu caso foi o das Caldas, e lá íamos nós, miúdos de 12, 13 anos, para a instrução militar. Não era de tipo ideológico directo. Era de carácter histórico. A grandeza da nossa pátria, os nossos grandes heróis, D. Nuno Álvares Pereira, a gesta dos descobrimentos, uma educação ultranacionalista, mas só isso, nitidamente. Eu, patriota, acho que já era antes de ir para a Mocidade Portuguesa. Não me pergunte porquê mas eu gostava de ser português. Era a minha terra. E saio da Mocidade Portuguesa com aquilo na cabeça. Epá, tínhamos sido dos primeiros povos a anular a escravatura, tínhamos um tipo de convívio com o Ultramar, com o preto, que os outros povos não tinham. É assim que parto daqui. Só que logo no dia em que o barco atraca ao porto do Lobito, e estou eu ainda na amurada, vejo um capataz, necessariamente branco, com uma fileira de pretos, aí uns 30 ou 40, presos com cordas muito grossas nos pulsos e nos tornozelos para a estiva. Pergunto a um engenheiro belga que já tinha experiência de África o que era aquilo e ele diz-me que eram os contratados. “Mas eles estão acorrentados.” “Estão, porque é assim.” Meses depois já eu sabia timtim por timtim o que era essa história dos contratados e como é que a escravatura continuava em Angola, e até o “apartheid” e tudo. Entretanto, as independências estavam a vir de Norte para Sul, andavam no ar.
Às duas por três vejo-me obrigado a estar numa repartição da Direcção Geral de Estradas.
A inspeccionar cartas de condução sem saber guiar.
É uma das minhas obras-primas. Como fui examinador de cartas de condução quando nunca guiei um carro. Isto para dizer que aquilo era um faroeste, até um tipo sem carta pôde estar a examinar. Fez passar pessoas? Ah, com certeza, aqueles camionistas que quando nasceram já sabiam guiar, esse gajos passaram logo.
Fui animar o Cineclube de Benguela, que estava parado, momento muito bonito porque descobri que havia lá um projector que ainda funcionava e uma quantidade de bobines de filmes do Charlot, daqueles de três minutos, um minuto e meio. Ideia: arranjar um gerador, um lençol e andei por tudo o que era “museke” a projectar as fitas do Charlot, toda a noite, porque aquela gente ria-se tanto, a festa era de tal modo que queriam sempre repetir outra vez, e eu ria-me outra vez, gargalhada geral, e aí descobri que o Charlot, sim senhor, era universal.
Entretanto, saí daquela repartição da maneira a que saio das coisas, digo até logo e nunca mais ninguém me vê.
Bom, vou morrer aqui cheio de caranguejos? Quando – como já animava o Cineclube e escrevia à borla para o “Intransigente” e para o “Jornal de Luanda” – sou convidado para o “Jornal do Lobito”. Eu detestava o Lobito. Muito inglês, com as sedes das companhias marítimas. Ao passo que Benguela era uma pequena cidade colonial, pacata, com as suas casuarinas, o cheiro intenso a peixe. Os gajos no Lobito davam-me 15 contos, ou lá o que era. Conto à Edite do Lobito e ela vai dizer ao velho dono do “Intransigente”. “Ó senhor Gastão Vinagre, está aqui o Vítor a dizer que vai para o Lobito.” E o velhote, que tinha muita asma, chamou-me. “Ó senhor Vinagre, que remédio é que eu tenho?” “Ó meu filho gostava tanto de ter aqui.” “Quanto é que o senhor me podia pagar?” “Ó meu filho, só te posso dar cinco contos.” “Senhor Vinagre, qual é a minha secretária?” E fui para o lado da Edite, todo contente.
O livro que escreveu em Angola, “Hot e etc”, é o quê?
Até foi, aqui para nós, um truque. Teve de haver uma “quête” e tudo para me arranjarem um bilhete para me porem a andar, senão era imediatamente preso. E chego aqui praticamente indocumentado.
Teve de sair de Angola por motivos políticos?
Sim. Eu tenho sido expulso de muitos sítios. Não tinha portanto bilhete de identidade. E aí já com a Célia – minha grande companheira, e que é um dos pilares do etc, companheirismo total e fidelidade total a mim e ao etc – vamos forjar um bilhete de identidade, e era obrigatório lá estar a profissão. Eu não podia pôr jornalista. Não havia sequer Sindicato dos Jornalistas lá em Angola. Eu queria pôr escritor. E por causa disso, a ver se pegava, como conhecia no Huambo o Garibaldino de Andrade e o Leonel Cosme, que editavam lá uma tal colecção “Imbondeiro”, de livrinhos pequeninos, propus umas historietas que tinha escrito, que se chamavam “Hot & etc. Aí está o etc. Que eram os três andamentos do jazz – eu também era maluco por jazz, o que era natural lá em África –, o hot, o cool, e o bop. Como o cool eram textos a atirar ao Joyce, tinham muitas vanguardices, os gajos lá me disseram que a malta podia não perceber nada. Eu disse que também não havia azar, o que eu queria era o livrinho. Então meti uma história pequenina chamada “Uma História sem Importância” muito à Vivaldi, uma Lisboa inventada por mim, toda Veneza, toda Alto de Santa Catarina, toda violeta, enfim, muito lírica, com uns diálogos entre um jovem par de namorados. Para juntar e fazer o livro que foi feito. Mas não tive sorte nenhuma porque isso não pegou. E, sim senhora, teve de se forjar uma assinatura falsa e umas coisas assim para eu ter o BI.
Quando regresso, e atendendo a que tive ligações políticas lá – fui amigo do Luandino Vieira, essas coisas –, a PIDE foi de tal modo que me tiraram a documentação. E depois: “Vamos ver como te portas.” Fiquei com um grande complexo persecutório, via que em todo o lado me estavam a seguir.
Volto a dizer, nunca fui do partido comunista, nunca estive em nenhuma organização clandestina, no entanto, do ponto de vista da acção, agi, fiz determinadas coisa. Eu, um estudante universitário e um carpinteiro, que até veio nos jornais e tudo: um dia a cidade de Benguela acorda e descobre que a toponímia estava completamente alterada. Onde dizia Praça Primeiro de Maio estava Praça Humberto Delgado e por aí fora.
Andaram a mudar os nomes todos.
Numa só noite. E num cinema com um enorme ecrã que andavam a fazer, escrito em alcatrão, que custa muito a tirar, e com letras deste tamanho [abre os braços]: “Viva a liberdade.”
A PIDE desconfiou que era eu e então deslocou um funcionário, de seu nome Delgado, para tomar conta de mim, que era jornalista no “Intransigente” e sediava num pequeno hotel... isto dizer hotel, enfim, hotel. E o tipo instala-se também no hotel. Mais, à minha mesa. Tu cá, tu lá. Havia momentos em que já tirava a carteira e mostrava o retrato da esposa de 120 quilos que tinha deixado na Beira, e dos filhos, e lacrimejava de saudades. “Senhor Delgado deixe lá isso, não chore”, dizia eu para o PIDE. “Diga-me uma coisa, quando faz anos?” “Dia tal.” “Então nesse dia vou mandar fazer um pano aqui a toda a largura do hotel com ‘Viva Delgado!’” O homem primeiro ria-se e depois “Veja lá, veja lá.” E lá mandava os relatórios dele.
Quando as coisas começam a apertar muito, eles apanham o tal estudante que se porta muito bem e não fala, e o carpinteiro idem – esse sim era do partido comunista. Portanto a malha começou a apertar e a malta: “O primeiro barco que houver pões-te a andar.” Mesmo assim ainda fui chamado, fui interrogado uma data de vezes, até por causa do ‘Intransigente’ e do Rádio Clube de Benguela, porque a parte informativa estava na minha mão, e alguém foi denunciar que eu nos noticiários deitava para o lixo os telegramas da ANI [Agência Nacional de Informação]. Isso serviu também para um interrogatório, se era verdade que eu fazia aquilo, ao que eu disse que era. Porque uma das acusações era não deixar transmitir notícias que dissessem respeito à actividade do Presidente do Conselho Doutor Oliveira Salazar, o que era uma coisa muito grave. Ao que eu disse que era verdade. E safei-me desta maneira – está escrito –: “Parto do princípio que o Doutor Salazar trabalha todos os dias. Ora esses telegramas da ANI dizem que de dois em dois meses Sua Excelência recebeu o senhor subsecretário de Estado disto ou daquilo, dando assim, ou podendo dar, a impressão de que o senhor só trabalha quando os telegramas da ANI dizem. Pelo sim pelo não, não ponho.” É claro, fui para o olho da rua com um processo admnistrativo. Também não ganhava nenhum, eram coisas à borla.
A certa altura estou no “Intransigente” e começa a guerra. A censura fica sem saber o que fazer, sem instruções de Lisboa. Então, eu em Benguela e o Adelino Tavares da Silva no “Jornal do Congo”, foi um fartar vilanagem, dizíamos o que muito bem queríamos, aproveitando esse momento em que não havia directivas. Ainda o Salazar não tinha feito o tal discurso “tudo para Angola”.
Portanto, eu somava estar a dirigir o Cineclube com estar à frente da informação do Rádio Clube, e parte dos meus artigos eram lidos fora de Angola, em Dacar, e aqui e acolá. Logo estava sob vigilância e era um animal a abater, contando-se que tinha ligações já com terroristas do MPLA, o que era verdade, e também recebia no meu quartinho dissidentes e terroristas caboverdianos e coisas assim, o que também era verdade. Tudo isso conflui na impossibilidade de continuar em Angola.
E posto que tivesse tido uma grande fusão com aquela terra, com aquelas gentes, amigos enormes, uma história comovente:
Eu estava no jornal. E de vez em quando precisava de ir ao meu quartinho buscar um livro ou qualquer coisa para trabalho. Quando lá chegava, deixando sempre as portas e janelas tudo aberto, tinha o quarto inundado daquela pretalhada toda, nomeadamente o Vítor Maria José, que limpava o meu quarto e era muito engraçado. Eu tinha um pequeno “pick up” de plástico Philips em que os tipos aprenderam a mexer, e como tinha aqueles discozinhos de 45 rotações da Bessie Smith, da Mahalia Jackson, chegava lá e estava tudo numa grande alegria a ouvir. Eu entrava, tirava as minhas coisas e ia-me embora.
Quem eram eles? Contratados. Como me viam lá às vezes a pintar coisas, um dia vieram com uma grande conversa. O que é que era? Quando acabava o contrato aqueles que não eram mortos – embora os contratos fossem muito continuados, mas a certa altura era demais, e eram obrigados a devolvê-los às terras de onde os tinham tirado – o Estado tinha de arranjar uma camioneta. Juntava aquela gente toda e eles tinham uns paus com umas bandeiras, era um momento de grande alegria porque iam regressar. E então vinham-me pedir a mim para fazer as bandeiras. Andei a pedir pano de lençol por todo o lado e fiz um sol, estrelas, coisas assim muito berrantes, lindíssimas, fui mais considerado por essa gente do que qualquer Picasso ou Miró – espero que isso não apareça no jornal senão o Joe Berardo vai saber onde é que estão essas bandeiras e ainda apareço no Centro Comercial de Belém. De modo que fui encarregadio das bandeiras da liberdade.
Um dia chego, e só lá está o tal criado do meu quartinho, muito triste, sentado na cama. “Epá, o que é que se passa? Então agora que vais embora é que estás triste?” Ele começa com uma grande conversa. O que é que ele queria? Levar com ele o disco de 45 rotações da Mahalia Jackson com o retrato dela na capa. Dei-lho.
Mas haveria alguma hipótese deste homem voltar a ouvir o disco? Algures no interior daquele “interland” deve estar um disco de Mahalia Jackson jamais ouvido naquele lugar. Mas tinha-o ele dentro do coração, do sangue, da cabeça. Levou aquilo como quem leva um pedacinho de Deus.
Quando começou a editora “& etc” pensou logo neste invulgar formato?
Antes de começar a produzir os livros, tínhamos a revista, que já lá tem um quadrado exacto. Fizeram-se ligeiros ajustamentos a partir daí, a escala reduziu. E partiu-se do quadrado.
Para simplificar podemos dizer assim: o quadrado é lixado. Forma geométrica tão simples, com o historial que tem, com a carga mítica que tem, o velho enigma da quadratura do círculo, a célebre relação 9/10 que o Almada [Negreiros] relacionava a partir do quadrado. É muito exigente. Parti do quadrado como de um canône. Normalmente, o canône obriga a. Não se pode fugir dele. É uma forma aparentemente rigída. Em princípio, até limitadora de liberdades. Ora bem, quem vai olhar para as centenas de capas dos livros da “& etc”, todas com um quadrado, há-de ver que esse quadrado em vez de ser limitador, pelo contrário, é um desafio aos criadores e permite uma liberdade de expressão que está patente em cada livrinho. À primeira vista parecem todos iguais, e são todos diferentes, obedecendo todos ao canône.
Parti, portanto, do quadrado. Mas os livros são rectângulos. A questão estava em como inserir o quadrado harmonicamente no rectângulo. Com um lápis e um papel desatei a fazer esboços, lembrando-me de uma conversa que tinha tido muitos anos antes com o mestre Almada, com quem tive íntima relação, quando uma vez, em relação aos painéis [da Gare Marítima de Alcântara], ele me perguntou se eu sabia como ele tinha chegado a determinadas conclusões que depois publicou. Eu disse que não. Ele disse: “Cheguei aqui sem cálculo.” Achei bizarro. Podia ser mais uma “boutade”, muito à maneira dos futuristas do início do século XX. Como era possível com um intrincado geométrico tão complexo? Estava eu, portanto, aqui também com um lápis e um papel e juro que não estava a fazer nenhumas contas de cabeça. Pouco a pouco, ao ir achatando o rectângulo, comecei a verificar que o quadrado com aquela dimensão estava a casar-se, a harmonizar-se com aquele rectângulo achatado. E aí sempre sem régua, firmei mais o traço, delimitei melhor o rectângulo. Só depois fui buscar uma régua, e desenhar com o esquadro. Continuei a achar que aquele casamento não ia dar divórcio. Era para a vida, ou para a morte. Encostei, claro, o quadrado à parte de baixo do rectângulo, porque tinha de jogar com o logotipo, o mesmo logotipo, o qual está inserido também num rectângulo, que tem também ele uma determinada dimensão. Pus então o logotipo no sítio que me parecia o certo.
Depois fui medir, para ver se os números também se casavam bem. Ai, casavam-se. Dentro da minha cabeça, casavam-se. Tudo isto tem uma enorme dose de subjectividade. Também eu estive a funcionar sem cálculo. Ou ressaltava dali uma sensação de harmonia, ou não. E no meu espírito tudo se harmonizava, o quadrado com o rectângulo e os numerozinhos.
Que eram?
Parti de um quadrado de 11/11. E não, fugindo ao que seria clássico nas mitologias numerólógicas, de 10/10. Não me pergunte porquê. Há uma parte instintiva. Mas tenho verificado, por causa de muita gente que pega nos livrinhos, que primeiro dizem que são quadrados. Efectivamente, claro que não são, mas parecem, e toda a gente se mostra encantada com aquilo. Excepto os livreiros – reagiram muito mal, continuam a não reagir muito bem. Ou porque os livrinhos não estão formatados para estante ou porque fogem deliberademente à tal imposição industrial.
A medida?
15,5 por 17,5. Quem quiser fazer depois brincadeiras com os números pode fazer.
E os livros do “etc” são encapados à mão sem vinco, para não destruir a colocação exacta do quadrado, a harmonia que pretendo que os livrinhos tenham. O outro objectivo é continuar a dar trabalho às encadernadoras. O trabalho de encadernação desde sempre é feminino – nas antigas oficinas até havia uma clara demarcação de espaço. E, muitas vezes, as folhas lá dentro também são dobradas à mão, com a faquinha de marfim. E os livros são cosidos e não colados. Portanto, há aí uma aproximação à artesania, ao artesanato, procurando assim equilibrar a exigência da tecnologia. A impressão hoje é toda “off set”. Eu fui o último editor a fazer livrinhos na antiga Tipografia Ideal, na Calçada de São Francisco, totalmente compostos à mão.
Em que ano?
Há mais de 20 anos. A oficina fechou e o material dispersou-se. Só um país de milionários broncos como Portugal é que se pode dar ao luxo de desperdiçar estas artesanias. A saloiada mental de seguir sempre o mais avançado leva-nos a menosprezar estas coisas. Porque se eu for ali à Suíça ou aos Estados Unidos da América tenho oficinas manuais e ainda a quente, a chumbo. Desde o tempo do senhor Gutenberg, os tais canônes, mesmo no que diz respeito à paginação, à colocação das linhas, à maneira de paginar poesia vêm de tempos imemoriais.
Aprendi, por exemplo, a paginar poesia com José Apolinário Ramos, grande artista tipógrafo da Tipografia Ideal, ele próprio poeta. Tipografia essa que chegou a fazer livrinhos do Gomes Leal e onde eu fiz “A Fonte de Camões”, de Gomes Leal, com os mesmos tipos [de letra]. Na poesia, sobretudo, atendendo a que os versos ora são muito curtos, ora são muito extensos, aquela coisa de, para facilitar, encostar sempre à esquerda da mancha, faz com que, em grande parte dos livros em que temos versos curtos, o resto da mancha seja um vazio enorme. Ele estabeleceu um eixo central na página, e a colocação do verso é pela medida do verso mais largo, que dentro desse eixo vai determinar o resto, dando assim uma harmonia no interior da mancha. Aqui está consignado. E muitos outros, o Manuel de Freitas [na editora Averno] e etc, começou tudo a paginar a poesia como ela deve ser. Isto vem do velho José Apolinário Ramos, que era tipógrafo durante o dia e ao fim da tarde tirava a sua batazinha azul, vestia o seu casaquinho, descia a Calçada de São Francisco e ia a pé até à Rua da Voz do Operário para a menina dos seus olhos. Porque era ele que cuidava da Biblioteca da Voz do Operário.
O “etc” liga-se à Tipografia Ideal por um episódio engraçado. Um dia passei por ali, olhei lá para dentro e era a escuridão total. Entrei e quis ver as caixas dos tipos. Sempre gostei muito de material tipográfico, da composição. O homenzinho começa a abrir as caixas, e eu caio para o lado de espanto. Ele eram maiúsculas de aço, lindas, de desenho, vinhetas, adornos, bom aço alemão do século não sei quantos. Uma maravilha que estava para ali perdida. Aquela casa já tinha tido o seu período heróico, entretanto tinha caído numa tal decadência que já só fazia cartões de visita, papel de carta, envelopes. E eu vou desafiá-los para voltarem a fazer aquilo a que se chama composição a cheio, obra livro. “Ah, não...” Estava tudo a cair da tripeça.
Fartei-me de falar da literatura de cordel, ia fazer a literatura contra-margem com papel manteigueiro, à memória desses opúsculos que se vendiam efectivamente pendurados num cordelinho, e com aquele papel tosco. Vamos lá dignificar os próprios materiais baratos em livro. Foi um entusiasmo e desatei a fazer lá os livrinhos, e a aprender muitíssimo com o José Apolinário Ramos. Dávamo-nos muito bem. Gostávamos da mesma coisa. Era um homem de rigor.
A zincogravura permite uma impressão muito melhor do que o “off set”, porque a impressão é como se fosse gravada, sobre pressão. Actualmente, o “off set” escorrega sobre o papel, toca-o. A pressão dá a coisa impressa personalidade táctil.
Agora já não é possível fazer livros assim. Mas uso truques. Imprimo a cartolina da capa ao contrário. Em vez de imprimir na parte brilhante, imprimo na parte baça. Se lhe puser a mãozinha sente ainda aquela penugem. Isto dá mais trabalho ao impressor, porque pode dar um certo efeito de mata-borrão. Então é preciso lutar-se contra o material. Mas essa luta é boa. E permite ao livrinho parecer totalmente artesanal.
Eduarda Dionísio [com quem trabalhou na associação Abril em Maio e recentemente no jornal “PREC”] diz que não há coisa de que o Vítor Silva Tavares goste mais do que a tipografia, e o Alberto Pimenta [um dos autores mais da casa, na “& etc”] crê que a fusão inseparável da estética e da ética é o que melhor o define. Tudo o que disse sobre a artesania do livro se relaciona bem com essa fusão. Agora preside à Abril em Maio, que está num limbo. O que o fez querer pertencer a este colectivo? Como resistência – não sei se a palavra é a boa?
É essa. É a única.
Um dia a Abril em Maio pediu para aqui uns livritos, disse onde era, à Graça, fui lá a um debate, um rés-do-, chão de uma casa antiga, fiquei encantadíssimo por ver aquele espaço e reencontrar finalmente a Eduarda Dionísio, que conhecia de nome. Sabia-a filha de quem era, mas nunca tinha tido relacionamento próximo.
E ao saber que aquela coisa tão encantadora que ali estava, onde um disco daqueles que não aparecem em lado nenhum – sei lá, o García Lorca a tocar piano – está ao lado de uma garra,, fa de azeite, de um, boneco de barro, de um livro; ao ver o tipo de pessoas, a miudagem; ao ver que também ali não havia nenhum propósito lucrativo, era uma associação cultural propriamente dita, e que também ela não dependia de nenhuma espécie de subsídios, nem disto nem daquilo, ou não estivesse lá a Eduarda Dionísio: havendo afinidades que não se podem circunscrever ao ideológico, que têm a ver com a maneira de estar e de fazer cultura, alheia ao “mainstream”; eu, que jamais tinha pertencido a qualquer clube resolvi ser sócio daquele.
Estava longe de imaginar que iria filiar-me numa associação que tinha a sua morte anunciada. Ser sócio não é só pagar a quota. Não posso abandonar o “etc”, onde faço de tudo, sou eu que varro também o chão, essas coisas, a minha disponibilidade está repartida, sempre. De qualquer modo tive trabalhos, iniciativas, ideias na Abril em Maio, daquela pulga eléctrica que é a Eduarda Dionísio. Tenho uma grande ternura por ela, uma grande admiração por aquela capacidade de mobilizar e de fazer, também pela sua capacidade de organização, eu que sou desorganizado. Muitas afinidades. De tal modo que não me interessa assim tanto a Abril em Maio. Quando gosto de uma pessoa, sou de uma fidelidade total. Só estou lá porque lá está a Eduarda, cultivando com ela o mesmo tipo de fidelidade. É um mau feitio que me quadra muito bem. Quem me dera ter dez por cento daquele mau feitio. É sempre recto.
Sempre falou no trabalho como uma fruição, parte da vida, dos amigos. É raro as pessoas estarem numa coisa porque gostam muito de alguém. Têm objectivos, têm projectos, podem ganhar isto, aquilo.
Eu e a Eduarda gostamos de fazer coisas. Com as mãos, com os pés, com a língua. Não vamos teorizar muito sobre as coisas. Temos afinidades, é escusado estar a gastar saliva. Entendemo-nos muito bem. Podemos passar logo para a acção e mobilizar outros para esse trabalho.
A ideia do “PREC”?
Nasceu aqui. O título foi meu. Quem tiver ideias sobre o nome a dar a esta folha, que é para ler e não para ver, portanto vamos inundar a mancha com letras, uma letra vale mais que mil imagens...
Isso hoje é um verdadeiro PREC.
Exacto. Então, quem tiver ideias ponha no papel. E eu tenho aqui uma que é uma dupla provocação: desta porta para fora, quando sair, e desta porta para dentro, para as cabecinhas de todos nós que aqui estamos. A minha proposta é chamar-lhe PREC.
Ponto dois, toda a gente vai associar PREC ao processo revolucionário em curso. Só que nós vamos utilizar cada número para aquilo que nos der na bolha, e assim subvertemos a própria ideia feita do PREC, porque no interior das letrinhas vamos sempre meter coisas distintas, o que foi praticado com algum humor.
PREC porquê? Porque é PREC, sim senhor, contra-corrente, o próprio formato, outra vez o papel manteigueiro, e, à semelhança dos velhos jornais, encher aquela página literalmente com um corpo tão pequenino que vale pela mancha. É, em sim mesmo, uma afirmaçao estética, tipográfica. Depois, se as pessoas quiserem ler até, com esforço, claro, têm lá coisas para ler.
E de um trabalho tão duro, por vezes até às duas, três da manhã, conseguirmos um momento lúdico de trabalho, sempre a rir, e sem expectativas.
Fazemos as coisas porque temos de as fazer, porque está na nossa condição. Depois já não é connosco, já está para fora de nós. E a mim tanto me faz que haja só uma pessoa que tenha lido, criticado aquilo, como dez mil, uma que fosse. Aí não tenho espírito de missão, nem aqui dentro. Isto não é nenhuma igreja, não há aqui nenhuma crença, faz-se porque se tem de fazer, está na nossa condição fazer, fazer assim, saber porque fazemos assim. Perseguimos, sim, uma ideia de harmonia, de beleza, de intervenção, e sabemos que é uma resistência. Resistência é a palavra, à falta de ar vigente, ao obscurantismo, à criação permanente de falsos mitos passageiros.
Quando olha para o que os jornais hoje são, quando olha para as livrarias e o que as povoa, o que sente? O que é que está a acontecer?
Ainda gosto de jornalismo e de jornalistas. Obviamente já não gosto de jornais. Não gosto da tabloidização dos jornais. Do jornal espectáculo. Fui homem de camisolas. A minha camisola em termos de jornalismo chamou-se “Intransigente”, em Benguela, e depois “Diário de Lisboa”. Não me reconheço de modo nenhum nos jornais que hoje existem. Mas sei fazer o “distinguo” dos jornalistas. Não são todos, claro, mas são alguns e esses sei reconhecê-los e gosto de jornalistas. Pessoas que ainda se queimam, porque é uma profissão para queimar. Gosto de jornalistas que têm a consciência de que estão lá para arder, num mundo que está a arder.
Há muita gente que acha que os jornais em papel não vão sobreviver.
É inevitável, vão sobreviver. Porque fixam coisas. Têm um suporte material. Sei que a onda agora não é essa mas é uma onda.
Vamos precisar sempre de alguma coisa portátil para pôr no bolso?
Alguma coisinha para agarrar com a mão. Precisamos de corpo, e os jornais são ainda corpo matérico.
O que é que pode renascer da Abril em Maio?
Sou um director virtual, nem lá ponho o pé, mas aquilo é também um espaço. E que espaço. Tem enormes virtualidades. Afirma logo muita coisa. O tipo de actividade que tinha suspendeu-se com a gradual saída da Eduarda. Ainda houve as tentativas do PREC poder funcionar lá. Claro que se desfez por desfasamento, apetites diferenciados, desinteresse, abulia, o que é costume nestas coisas.
Partindo do princípio de que não morreu, de que está à espera?
Está a ser reanimada, o espaço vai ser utilizado como uma pequena escola para crianças de introdução à multimédia, já se estão a fazer almoços e jantares. Aquele espaço está a ser revificado. O meu esforço foi no sentido de deixar a porta aberta. Conseguiu-se, até agora. Com a porta aberta, pode ter a certeza, vai continuar a haver quem entra e quem saia. O importante é ter a porta aberta.
Não tenho qualquer teoria que me alimente qualquer optimismo no que respeita a movimentos de massas. Tenho pena de não ter, mas não tenho. Em compensação, o “etc” é um espaço onde tenho provas de que algures, até aqui em Portugal, na remota Vila Real ou na Guarda, aparece gente nova com uma frescura ainda no estar, uma recusa idêntica à desta chafarica de se verem integrados em estruturas, para o caso culturais, entendidas como normais, e encontro muitos sinais disso.
Não vou dizer que é uma nova geração. Mas vai havendo uma soma de um mais um mais uma mais um, que me deixa nesse aspecto optimista. Seria pessimista, género Vasco Pulido Valente, se pudesse dizer: “Isto é uma choldra, tudo. A juventude toda é uma merda, consumista, alienada.” Isso não é verdadeiro. Em massa, com certeza. Mas fora da massa vai aparecendo gente que vem aqui tocar à campainha. Esta casa já fez nascer meia dúzia de aventuras editoriais. Mas também livrarias, espalhadas por aqui e por acolá, e que não estão lá para ganhar montes de massa. Isto não é uma casa de negócios, quando vêm aqui tocar à campainha, vêm para beber um bocadinho desta água. Eu digo sempre, isto é uma função poética, dá para fazer livrinhos e outras coisas.
Costumo dizer que sou tão magrinho que passo entre as cordas da chuva, e no meio desse mar encapelado [da edição portuguesa] a verdade é que esta pequena rolha flutua, vai para baixo, para cima, mas flutua. E aí não estou sozinho. Era impossível sozinho fazer isto. Tinha que ter, e tenho, cúmplices de tal modo fiéis, e fortes e firmes, aqueles capazes de comer pedras, e ainda assim continuarmos, por teimosia, por masoquismo.
Quer falar deles?
A Célia, o Rui Caeiro, o Al Berto. O meu cunhado Jorge. Um pequeno núcleo daqueles que aguentam tudo.
E duas ou três aventuras poéticas que sente que são a sua família?
Desde o meu antigo encantamente pela Ulisseia, mas também pela velha editora Inquérito, do Salgueiro. Foi-me dito pelo Luiz Pacheco que o velho Eduardo Salgueiro conseguiu aguentar a editorial Inquérito 50 anos na falência. Eu ainda só fazer 35. Quem me dera poder chegar a esse número. Há 50 anos que estamos falidos, mas de porta aberta.
Mais próximos de nós, um grande editor, maluco, nem por isso muito culto, mas com um instinto, um faro, e também um gosto de fazer a toda a prova, Fernando Ribeiro de Mello, das Edições Afrodite, o tal que queria fazer a revolução sexual em Portugal. Fez a dele, já não está mal. Meu grande amigo e sócio no arranque do etc.
Tive muita pena de ter ido abaixo o projecto da Hiena. Arrancou muito bem, aí estava um homem amante do livro [Rui Martiniano]. A Hiena começou com...
Uma tradução sua, “O Sorriso aos Pés da Escada”.
O [Henry] Miller, exactamente. E quando me vieram dizer até fiquei zangado. Porquê? Não foi por terem editado, nunca faço reedições, muito menos isso, uma coisa que tinha feito na Ulisseia há não sei quantos anos. Foi por não me ter dito nada. Então alguma vez eu ia levantar qualquer problema em o homem usar o prefácio ou a tradução ou coisa assim. Então de todo em todo não me estava a conhecer. O trabalho aqui quem quiser tira, o “copyright” é dos autores. O etc não tem “copyright”. É sabido que em “n” casos sou um editor pirata. Sim senhor, corro esse risco. Também lhe digo que essas piratarias nunca foram feitas sobre autores vivos, ponto um. Ponto dois, nunca eu retirei delas um tostão de lucros. Ponto três, parte das piratarias aqui feitas são de pequenos textos, laterais à obra dos autores, com tão pequena dimensão, que até os vendedores do “copyright” não vendem por não terem interesse comercial nisso, o que quer dizer que se deixam de publicar uma quantidade de coisas por causa do “copyright”. Então, eu borro-me para o “copyright”, podendo apanhar uma denúncia, sim senhor,
Para passar os livros.
São ainda piratarias poéticas. Então tive pena, pena, de projectos como a Hiena, ou quando o Fenda foi abaixo – felizmente o Vasco tem sabido pô-la em pé. De certo modo a Fenda também nasceu por causa da etc. Ou como a Contexto, que foi abaixo.
[e a Averno, que continua, mas já tinha acabado a terceira cassete.
Foi assim que ficou por gravar a história de quando Herberto Helder e Vítor Silva Tavares foram do Tony dos Bifes para a Polícia Judiciária participar uma contrafacção]